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X-Acto

Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos


Sábado, 12.12.15

E tudo estaria bem, se não fosse a maldita internet

Há muito tempo que não escrevo aqui no blog, mas hoje vai ter de ser. E sei que está sol e que é altura de compras de Natal, mas ainda assim espero que alguns leiam. 


Nas últimas duas semanas voltaram as notícias de despedimentos nos jornais. Todos nós, jornalistas, sentimos um aperto no coração, pensando nas pessoas que conhecemos, com quem trabalhámos lado a lado, ou aquelas que apenas lemos ou com quem tomámos um café numa conferência de imprensa. Pessoas como nós, que escolheram como profissão informar e ajudar, através da informação, as outras pessoas a tomar melhores decisões, decisões informadas. É por isto, muito por isto, que o jornalismo é e deve ser serviço público.


Nos dias que se seguiram as estes anúncios de despedimentos, multiplicaram-se posts sobre a sucessão de erros, o facto de serem sempre os jornalistas a pagar a factura de um negócio que está em mudança há 20 anos. Um negócio cujas regras mudaram perante o imobilismo dos principais decisores, sejam eles empresários ou jornalistas em lugares de decisão. Muitos podem fazer de conta que não se lembram, mas eu tenho idade suficiente e tempo de trabalho na profissão suficiente para me lembrar de todas as razões que ouvi serem invocadas para ‘não nos preocuparmos com a internet’. Também ouvi todas as razões pelas quais devemos é ‘proteger’ o papel - que, já agora, são as mesmas pelas quais agora devemos é ‘proteger’ a televisão. Claro que à medida que os anos foram passando, as audiências, as pessoas para quem produzimos informação, foram se transferindo mais e mais para sites, redes sociais, agregadores. Mas continuou a não se passar nada. E agora, que se passa alguma coisa, é uma espécie de esquizofrenia do share e do click que nos leva vertiginosamente, e numa base diária, para o abismo.


Porque é que é, tem sido e pode assustadoramente continuar a ser, tão difícil enfrentar a mudança e pensar em soluções alternativas?
Em primeiro lugar, esta espécie de resistência empedernida não é só nossa - é património global da indústria. Claro que se sente mais numa país pequeno, com menos dinheiro e com menos pessoas a valorizar a informação. Mas o problema é global.
Mas, na essência, está o desenho de uma indústria e o status quo de um conjunto de pessoas.
A indústria de media da era do papel e da era da televisão é cara. Envolve grandes investimentos, seja no papel e na gráfica, seja em equipamentos e tecnologia. Para se sustentar precisa de bastante dinheiro - e esse dinheiro era sobretudo obtido através da publicidade.
Por sua vez, a publicidade foi vendida - ainda é, se olharmos para a forma anacrónica como se avaliam audiências de televisão - a partir de métricas extrapoladas. Por amostra, por dedução. O que na realidade permitiu durante anos uma adaptação ou manipulação, como queiram, dos preços à medida das necessidades. Como dizia um director-geral com quem trabalhei e de quem guardo boas memórias, tudo depende da pergunta que se faz primeiro. Se quanto dinheiro há disponível no mercado para este projecto ou quanto dinheiro me custa este projecto. Muita coisa se define a partir daí.


E tudo estaria bem, se não fosse a maldita internet.
A maldita internet e as suas métricas, a sua informação ao detalhe, a sua mania dos pormenores.
Tudo estaria, no caso português, ainda melhor, se não fossem esses malditos gigantes como o Youtube e o Facebook e a sua maldita capacidade de atrair pessoas, muitas pessoas, e depois vender as informações sobre os seus utilizadores a todo o mercado anunciante … a um preço muitas vezes imbatível para quem tem tantas contas para pagar como os grupos de media.


Ironias à parte, há várias considerações a tomar em linha de conta.
1. Os grupos de media foram construídos a pensar numa indústria de media diferente. Essa indústria precisava de mais pessoas, em todas as áreas. Não me é óbvio que hoje sejam precisas menos pessoas - eventualmente sim. Mas é óbvio que são precisas pessoas com competências diferentes e provavelmente são precisas áreas de trabalho diferentes nos grupos de media (quantos grupos de media têm área de data journalism em Portugal? com quantas pessoas? quantos têm uma equipa de design especializada em visualização de dados? com quantas pessoas? quantos têm equipa de pesquisa em temas que ultrapassam a espuma dos dias? com quantas pessoas?)
2. A postura de excitação com o digital é tão má quanto a postura de negação do digital. Na primeira, surgem os oportunistas de serviço que não falam sequer de informação - são as pessoas do ‘dá click’ e do isto tem de ser ‘fun’. Ainda neste grupo da excitação, temos outra tribo, a que vende o jornalismo em pastilhas digitais. É só tomar este algoritmo três vezes ao dia e teremos um negócio florescente de media. Se o futuro dos media passar por aqui, Houston we do have a problem. Na segunda, a da negação, surgem os velhos do Restelo - o do antes é que era bom, eu cá não escrevo para o online e tenho mais que fazer do que perceber como é que o meu trabalho pode chegar a mais gente, esse é um problema dos ‘outros’.

3. Desvalorizar o digital não vai salvar ninguém e, no limite, vai fazer com que todos percam. Não salvou os jornais - que sistematicamente desvalorizaram o digital e que ainda hoje, quando vendem em bloco papel e digital, insistem em que o papel deve ter mais valor. Não vai salvar as televisões - que estão a fazer exactamente o mesmo que os jornais, ou seja, a vender por tuta e meia a sua presença no digital em troca de manter o status quo desse produto premium que é a televisão. Mais uma vez, é um tema de indústria, a televisão custa mais dinheiro a fazer e deve receber justo retorno para isso - apenas o caminho não é consegui-lo através da desvalorização do digital, mas sim através de uma estratégia integrada que faça sentido.
4. O jornalismo tem de ser melhor. Essa é a falha dos jornalistas. Ontem, o Paulo Querido escreveu um texto na newsletter Hoje.li sobre este tema. E falava do jornalismo de repetição e do copy/paste ad nauseum. Tem razão, pode custar a muito boa gente, mas a maior parte das redacções está concentrada em apenas copiar e copiar e copiar. Algum copianço não faz mal? Não, e inclusive faz parte, num mundo em que se multiplicam fontes. É possível afirmar um meio de comunicação apenas com copianço? Não, não é. Tal como o cábula deixará de ter boas notas se o tipo que é bom aluno não deixar que copie por ele. E, se a indústria como um todo não se repensar - e eu acredito que isso vai acontecer - nem os bons alunos, os tipos inteligentes, ficarão. Ai sobrará o vácuo para ser partilhado, ou a cabotinagem social. E não seremos salvos pelo Facebook e pelo Youtube - a não ser que à excepção das discussões da rede de amigos de cada um de nós, não nos importemos de apenas consumir informação internacional que sobreviva.
5. Os modelos de financiamento dos media devem ser um tema de discussão pública alargada. Também esta semana, no blog Ponto 3, o João Marcelino criticou o que designou de jornalismo de interesses. Os jornais que surgiram ou que se mantém apenas e tão somente como veículo político. Se é apenas e tão somente esse o objectivo, e tem sido em vários projectos, não vislumbro grande sorte. É sempre uma questão de tempo. Mas não me choca saber que um jornal tem este ou aquele investidor, que tem este ou aquele interesse político. Há uma diferença entre tomar partido e ser manipulador - e tomar partido de forma transparente é uma premissa de vivermos em democracia.

Isto foi tudo escrito num dia em que finalmente consegui ler um artigo do João Dias Miguel, publicado na Visão de dia 22 de outubro deste ano. Chama-se “Infotráfico, quando a presa somos nós” e é dos melhores trabalhos que li nos últimos tempos, seja de fontes portuguesas ou internacionais.
É um trabalho sério, bem escrito, bem documentado, bem pensado e que, passe a redundância, deu trabalho. É um trabalho sem cópia.É também um trabalho incopiável, pelo menos para preguiçosos, porque o João Dias Miguel não deu autorização para que fosse publicado na íntegra online. Mas isso é por outras razões e se querem saber quais deviam mesmo ler este artigo, a todos os títulos excepcional. (existe um PDF publicado por uma sociedade de advogados, mas que, atendendo à vontade expressa do autor de não ter o artigo integral no online, decidi não incluir aqui. Ainda que na internet, todas as avenidas sejam curtas).
Tivéssemos nós mais disto e os media teriam menos crise e mais leitores. Como dizia um dia o João Ramos de Almeida, “achas mesmo possível que redacções com dezenas de jornalistas não consigam, no mínimo, produzir uma peça original, própria, com relevância, por dia?. Não. não acho.

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por sparks às 14:25

Segunda-feira, 27.07.15

Para Londres com amor

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Onde é que nos sentimos em casa? Nos últimos tempos, esta tem sido uma pergunta que me zurze. Casa é casa. A nossa. A da mãe. A da avó. A dos amigos. Mas é mais que isso. Casa é onde estão aqueles que são a nossa vida  - e isso dá-nos hoje, mais do que nunca, uma liberdade enorme, tão grande como a angústia de sabermos que o mundo se tornou mais pequeno e que é mais fácil ir embora. Nunca emigrei e nunca pensei em emigrar. Aqui e ali pensei em trabalhar um certo tempo fora de Portugal - continuo a achar que não é a mesma coisa que emigrar.

Londres é a cidade que mais gosto a seguir à minha. Foi a primeira cidade que levei os meus filhos - bebés - a conhecer. Foi a primeira capital em que me senti em casa desde o primeiro momento. Love at first sight. Tudo correu sempre bem. O frio gelado, o calor que não se aguenta dentro de portas, os pubs das 5 da tarde, os pubs das 9 da noite (não são os mesmos), as ruas cheias, os parques onde se todos se espraiam, a música, as artes, a história, os mercados, os livros, o cheiro de comida de rua antes da comida de rua ser moda. E, claro, os ingleses. E os holandeses, e os alemães, e os franceses, e os vietnamitas, espanhóis ou tugas como eu que ali se encontram no babel mais caseiro que me foi dado a provar. É assim há 25 anos (bolas, 25 anos é imenso tempo!).

Há menos de um mês regressei uma vez mais a esta casa. Londres nunca foi turismo e, desta vez, pela primeira vez, algo me fez sentir uma quase-turista. Andei a digerir esta sensação incómoda e, como geralmente me acontece, as respostas foram chegando em capítulos como que previamente escritos.

Londres está cheia. Muito cheia, quase irrespirável em certos momentos. Londres sempre esteve cheia, certo? Se calhar sou eu que estou a mudar. Londres está densa. Se calhar foi do calor, afinal estive lá na semana mais quente do ano até à data. Londres está cara, muito cara e mais tentadora que nunca. Não é justo. Uma cidade de milionários e de solitários; qualquer combinação acima de 1+1eventual é wallet damage. Se calhar apenas esta portuguesa ficou mais pobre (de certeza).

Ainda não refeita desta espécie de pequeno desgosto amoroso, estive, uma vez mais, em Oxford e em Bordéus. Não foi uma primeira vez em qualquer uma. Sempre me comoveram e sempre me deixaram a pensar no 'what if'. À semelhança do que nos acontece com algumas pessoas. Mas desta vez foi diferente. Desta vez foi aí, em cidades separadas pela história, pela língua e por centenas de quilómetros, que respirei. Não importou o calor, ou mesmo o preço de um café. Foi tão bom cruzar as ruas, foi tão bom ser fácil conversar com o inglês da loja de chocolates e com o francês do restaurante vietnamita. Foi tão bom ter caminho livre, desimpedido, não nos perdermos de vista, mesmo quando nos perdemos de vista.

Cheguei a Lisboa e tinha à minha espera uma entrevista do Pedro Gadanho, curador do MoMA de Nova Iorque até há um mês. Cidade que largou para voltar a Lisboa onde será o director de programação do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT). E foi a cidade que ele largou, mais que o MoMA, e menos ainda que a sua carreira (e como sabe bem ler pessoas que se importam com o que fazem e como vivem mais do que com as oportunidades de carreira). Deixou Nova Iorque por estar cheia, diz ele, por estar suja, por ter ruído, por a vida se perder nos minutos que esse monstro chamado vida moderna devora.  If you can make it there ... talvez não.

Dias depois reencontro uma amiga que se encontra a viver em Washington. Uma amiga in love with Washington, com o seu cherry blossom, a cidade que cheira bem, onde a vida não é lenta mas não tritura. Tão perto de Nova Iorque que conseguimos provar o seu bom veneno e estar de volta antes de nos asfixiar. 

Dias depois, o meu filho mais velho lança a discussão em casa: Londres ou Copenhaga? Erasmus à vista daqui a pouco mais de um ano e uma mãe que nunca pensou hesitar perante esta pergunta.

Ainda não tenho resposta para o que torna uma cidade a nossa casa (além da cidade que é realmente a nossa casa). Talvez seja mesmo pessoal e intransmissível - provavelmente é. Há quem diga que depende do que se vive num espaço e num tempo. Mas não é disso que falo, é outra coisa. Aquela coisa que se sente logo se chega e que inexplicavelmente nos diz 'tu és daqui'. Sem necessidade de piropo nem pós-produção. Nos dias que correm, Porto é a cidade que me faz sentir em casa - lucky me, estou a 300 quilómetros. Devolve-me esse sentimento de encaixe a cada visita que faço, aquela coisa de dizermos 'eu pertenço aqui'. Mas por estes dias podia pertencer a Bordéus ou a Oxford, muito mais que a Londres ou Paris, o que na minha natureza é, no mínimo, estranho. 

As cidades da nossa vida são como os amores - alguns para sempre, outros não. Londres é para sempre, mas como nos amores maiores, às vezes é preciso dar um tempo. Para Londres, com amor.

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por sparks às 18:42

Segunda-feira, 13.07.15

A máquina não gosta de gatos

Em política, o que parece é. E quando a Alemanha impôs que a Grécia entregasse 50 mil milhões de euros das receitas geradas por privatizações de bens gregos a uma entidade por sua vez gerida pelo seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, o que pareceu, foi aquilo que realmente aconteceu. Não foi uma humilhação. Não foi uma submissão. Foi o fim de uma ideia de Europa com a qual a minha geração cresceu. Essa Europa acabou. Ponto final.

Sobre este fim tão anunciado, podemos tecer várias considerações que à lei de tão consideradas se tornaram banais. Não, a História não produz efeitos futuros. Sim, a memória dos povos fica, no seu pior, e vai-se, no seu melhor (lembramos os ódios, esquecemos como os vencemos). 

Enquanto decorriam as derradeiras horas do encontro do Eurogrupo, um amigo escrevia, em reposta a um post que publiquei, que 'a máquina não gosta de gatos'. A máquina é a Alemanha, os gatos são uma espécie traiçoeira produzida pelos gregos. Fiquei a pensar na expressão e em tudo o que significa.

A máquina não gosta de gatos. Pois, terá razões para isso. O que retira à máquina legitimidade moral para ter alergia aos gatos é, uma vez mais, a História. Neste caso,a  História destes últimos 20 anos de União Europeia liderada pela Alemanha. 

Se descontar aquilo que a História nos lembra e que nós esquecemos, não é difícil perceber os alemães no seu papel de credor ou de putativo credor-mor. O Estado grego - não os gregos - falhou. Vez atrás de vez. Falhou reformas, falhou pagamentos, falhou com a palavra. Não é digno de confiança numa avaliação moral - e factual.

Logo, esgotada qualquer confiança, há que obter garantias que desta vez será diferente. Os 50 mil milhões sob gestão externa são essa garantia. Os 50 mil milhões sob gestão da Alemanha de Schäuble passam a ser outra coisa.

Mas continuemos na linha de raciocínio. O Estado grego está longe de ser um exemplo que possa orgulhar os gregos. Mas não está sozinho. Portugal não é a Grécia? Ah, podem crer que é. Muito mais do que os coros afinados são capazes de admitir. Menos audaz na mentira e na fraude - aquela coisa portuguesa de ter respeitinho, cuidadinho e outros 'inhos' ajudou que alguns embustes fossem bem menores - mas, na mesma, cheio de compadrios, privilégios eternizados, combinações de compinchas à volta de um mesmo tacho. O tacho da riqueza que se produz em Portugal e o tacho do dinheiro que a Europa mandou para cá anos a fio.

Ao longo destes 30 anos, não só se sucederam as pequenas fraudes diárias, como se adiaram de ano para ano as ditas reformas estruturais que tornariam a Europa económica e social mais igual entre si e que transformariam o projecto europeu num verdadeiro roteiro de progresso e desenvolvimento. A máquina deu-se bem com os gatos. Recebeu-os em sua casa, afagou os costados à maioria e, não menos importante, fez negócio e ganhou dinheiro com a gataria. Até perder. E os gatos só passaram a ser um animal destestável quando a máquina perdeu dinheiro. Aí foi decretada oficialmente a alergia do reino europeu aos gatos e o remédio para o seu extremínio ou, no mínimo, castração.

O problema da Europa nunca foi financeiro. Menos ainda num tempo em que o dinheiro se tornou uma suposição, uma presunção, mais do que uma evidência. O problema da Europa -e  muito em concreto o problema dos gregos e dos portugueses - foi sempre e antes de tudo social e cultural. Era para isso que precisávamos da Europa. Para fazer uma profunda transformação em sociedades que herdaram pobrezas e pensamento limitado de geração em geração. Sociedades com elites fracas, podres, mesquinhas. Sociedades que precisavam do sopro de quem há mais tempo vivia melhor e em liberdade - aquela liberdade que só temos quando não precisamos de dizer que sim quando é não apenas para sobreviver.

Gerida como um projecto financeiro-contabilístico-oportunístico, a grande Europa diluiu-se nas misérias nacionais. Foi cumplíce dos miseráveis. Extorquiu e pactuou com uns e com outros. 

Na Grécia, como em Portugal, o que era continuou a ser. Os Schäubles da máquina, que de forma tão exibicionista crucificaram Tsipras e a sua tribo, foram gatinhos fofinhos com toda uma corte de políticos que desfilaram no pelourinho das soberanias nacionais. Não sentiram um ímpeto moralista com os governos de Cavaco Silva. Frau Merkel adorou conviver com o governo de Sócrates. O mesmo com socialistas e sociais democratas da Grécia.Tudo estava bem enquanto a máquina facturava.

No reino dos gatos, também tudo corria bem até correr mal. Umas escaramuças aqui e ali, mas enquanto o dinheiro correu, a moralidade ficou na despensa. Esta é a nossa grande responsabilidade - de portugueses e de gregos. Os políticos que nos crucificaram, como Schäuble crucificou Tsipras, são aqueles que nós escolhemos. Porque enquanto sobraram umas migalhas aqui e ali, e o banco emprestava dinheiro barato, e havia aumentos na Função Pública, tudo estava bem. Lá íamos votar ao domingo com aquele espírito de 'voto e aproveito tomo uma bica', de vez em quando lá vinha o voto da pequena raiva porque este ou aquele gajo mexeu com o queixo destes ou daqueles, mas, feitas as contas, quisemos sempre mais do mesmo, porque já sabemos com o que contamos e somos um povo que gosta da ordem e de não fazer farinha.

Na Grécia, não foi diferente. Os mesmos, com os mesmos tiques, e um mesmo povo que enquanto houvesse pão e vinho dançava à mesma música.

Os países da Europa rica também erraram. Também tiveram políticos corruptos. Também falharam metas. Mas, et voilá, nessa Europa que hoje, dia 13 de julho, é a Europa dos outros, erraram menos em causa própria. Enquanto em Portugal e na Grécia se faziam arranjos e arranjinhos para benefício de poucos e a serem pagos pelos impostos de muitos, noutras paragens fazia-se exactamente o inverso. E é por isso que Angela Merkel reuniu tanta unanimidade entre os alemães - a máquina ataca quem está fora e protege quem está dentro. 

Era por isso que precisávamos de uma Europa. De uma Europa dos bons. De uma Europa liderada por homens e mulheres generosos, com sabedoria, orientados para algo maior do que eles.

Portugueses e gregos, e não o Estado português e o Estado grego, foram entregues à fera para que nos devorasse. Com juros, com salários e, no fim do dia, com a própria carne.

Shylock está no meio de nós. Adeus, Europa.

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por sparks às 20:30

Quarta-feira, 10.06.15

Quero ter saudades de Portugal.

A RTP exibiu esta manhã uma reportagem sobre os emigrantes. Vem a jeito do 10 de junho. Vem a propósito do Dia de Portugal. A reportagem está bem feita. Na preguiça da manhã que corre devagar deixei-me ficar com o comando na mão mas sem trocar de canal. Os emigrantes estão na Suíça. A vida ali é diferente, garantem. "Não podíamos levar aqui a vida que levávamos em Portugal". Qual vida? A vida de casa-trabalho e um bónus ao fim de semana com um passeio em família. "Ao centro comercial?", pergunta a jornalista. Sim, confirmam, ao centro comercial. Fico sem saber se essa era a 'boa vida' versus a vida dura no estrangeiro. Fico sem saber se é uma vida melhor ou pior, a que agora têm. Mas sei que não tencionam voltar - "Portugal só é bom para férias e mesmo assim não pode ser muito tempo". Ganham sete vezes mais na Suíça. Os filhos gostam da Suíça.

Outros emigrantes estão em Angola. Já pensaram voltar a Portugal, mas a troika fê-los desistir da ideia. Para os próximos quatro ou cinco anos também não querem ter ideias dessas. Angola dá-lhes 'a estabilidade que Portugal lhes tirou'. Angola dá-lhes estabilidade. Vivem bem. Têm emprego. A mulher da família descobriu uma oportunidade de negócio em Angola. O homem da família até gostava de abrir um negócio dele em Portugal - mas Portugal não está para isso.

Outros emigrantes voltaram. Um dos que vejo na reportagem foi para Inglaterra e voltou. É professor primário. Portugal continua na mesma, diz. Mas ele não estava disposto ao esforço que Inglaterra lhe exigia numa escola em que se falavam 32 línguas.

A reportagem fala ainda dos portugueses felizes. Um dos investigadores chefes da Fundação Champalimaud. Ou outro chef, o Kiko Martins, que já correu mundo - porque quis, não porque precisou. São portugueses felizes porque podem escolher. Poder escolher é uma grande felicidade. Há portugueses que podem escolher, que Portugal não está a tratar bem, e que ainda assim aqui ficam. Conheço vários. Sou um desses em alguns dias mais cinzentos de humor. Mas ainda assim, sabem que podem escolher. Poder escolher é uma enorme felicidade.

Mas aquilo que me faz falta é sentir essa saudade. A saudade do cheiro, da comida de tacho, das sardinhas assadas, do clima, das varandas, até das marquises. A saudade da língua, dos palavrões, dos trocadilhos nacionais que são um segredo só nosso. A saudade de vir ao Porto e dizer que não há gente como a nossa. A saudade dos lisboetas, mesmo dos queques e cocós, e do seu orgulho na capital mais luminosa do mundo. A saudade dos espirros que anunciam a Primavera, das cerejas vendidas na rua, do dia da espiga que anuncia o bom tempo. A saudade do cheiro a praia quando o verão se aproxima, a saudade da terra molhada quando o outono entra. A saudade dos dias de chuva quando chega o Natal, de descer o Chiado sem chapéu-de-chuva em dia de chuva. Saudades do meu bairro, da praça, do senhor Sadik dos legumes e do senhor Alcides do talho. Saudade da minha praia, do nosso Alentejo, das Beiras da minha avó. 

Gostava de sentir esta saudade. De a experimentar, pelo menos. De me sentir mais portuguesa porque sinto falta de tudo isto que é Portugal. De ter a certeza que sou parte disto e não apenas que nasci, cresci e vivo aqui. Nos dias que não são de Portugal tenho dúvidas frequentes, não estou segura que este país seja para todos que cá estão e menos ainda que a maioria dos que cá estão seja o meu país. Gosto de tanto e desgosto de outro tanto. Se calhar é assim em todo o lado. Os países são mais que a soma dos sabores, cheiros e manias comuns. Os países são memórias e por isso são também são sabores, cheiros e manias. Mas não só. Gostava de saber o que são saudades de Portugal, mas detestava ter saudades dos portugueses de quem gosto.Todo este Portugal está nas pessoas de quem gostamos. As pessoas de quem gosto são o meu país. Com elas até acho que fazia um país novo. Sem elas qualquer sítio é inóspito. E essa saudade ninguém merece. E não, não é a mesma coisa de quem vai ali e já volta.   

 

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por sparks às 16:23

Segunda-feira, 08.06.15

O que é que isto tem a ver com educação? É só um programa de televisão

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Estou a ler um livro que já fez correr muita tinta. Foi publicado a 7 de janeiro de 2015, o dia do massacre na redacção do jornal satírico francês Charlie Hebdo. Chama-se 'Submissão' e era a caricatura do seu autor, Michel Houellebecq, que estava na capa da edição dessa semana do Charlie.

Não era minha intenção escrever hoje sobre o livro - até porque ainda não acabei de o ler. Mas foi incontornável escrever sobre o livro quando inadvertidamente assisti durante o jantar desta noite a um programa de televisão em canal aberto - logo acessível a todos os que têm um aparelho de televisão.

Vamos por partes. Submissão é um romance que se passa em França, em 2020. Personagens reais como François Hollande, Manuel Valls e Marine Le Pen fazem parte de um cenário de ficção (?) em que, mediante o fracasso dos partidos do centrão francês (socialistas e UMP), as eleições presidenciais se travam entre a Frente Nacional e o Partido da Fraternidade Muçulmana. A extrema direita versus, como alguém já escreveu, uma espécie de islamismo porreiro.

Em 'Submissão', os socialistas acabam por se aliar ao novo partido muçulmano para derrotar a extrema-direita de Le Pen. No pacto de regime que estabelecem, o Partido da Fraternidade Muçulmana imaginado por Houellebecq entrega de mão beijada aos socialistas os ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros. Uma espécie de síntese da história do poder - o poder de fazer a guerra e o poder do dinheiro. As jóias da coroa de qualquer de qualquer soberania. No livro, o Partido da Fraternidade Muçulmana não quer estes poderes - e apenas exige um outro, como contrapartida, o Ministério da Educação. E é nesse território que se propõe mudar a França, desde logo começando por uma revisão da matéria dada sobre o papel da mulher na sociedade.

Um dia destes voltarei a este livro, mas este texto é sobre televisão, media, cultura, civilização, progresso. E sobre educação.

O pacto imaginado por Houellebecq é uma ideia genial. Tão mais genial por ser tão obscenamente ignorada na nossa civilizada civilização de todos os dias. Esqueçam o Islão, esqueçam as religiões, esqueçam a disputa norte-sul. Vejam só as coisas por este ângulo: estamos todos tão preocupados a discutir dinheiro, bancos, dívidas, estamos tão obcecados com dinheiro e com viver pelo e para o dinheiro que estamos mesmo a jeito para sermos implodidos. Porque é de facto a educação que nos molda, que nos transforma, que nos leva a ser o que somos. E porque não há maior poder do que esse.

E é agora que chego às televisões, aos media e às audiências.

Estive em viagem e parei por acaso num restaurante no meio de Portugal. Escolhemos o nosso lugar numa sala não muito grande, mas com dois televisores gigantes em cada extremo (foi pensado para servir o cliente, mas transforma-se rapidamente na constatação de que não se pode fugir à imagem da tv). E, sem opção, lá jantámos ao som estridente de um programa que é factualmente um sucesso. Tem apresentadores de televisão famosos, tem actores de telenovelas famosos, tem um júri igualmente famoso (e que fala de um espectáculo de tv com a solenidade de quem está a ditar prognósticos para os destinos do mundo). Tem publicidade metida a torto e a direito, nos cenários, nos rodapés de ´ligue já para o 760´, nos apresentadores famosos que saltam do palco principal para um cantinho onde dizem maravilhas sobre o produto que está na banquinha ao lado (tipo demonstradores de corredor de supermercado). Tem cenas imperdíveis de bastidores onde as pessoas concorrem entre si na hipérbole do postiço - riem muito, fazem gestos estranhos, têm súbitas vontades de se abraçar e beijar. As imagens da assistência no estúdio mostram pessoas ora num estado de excitação ora num estado de contemplação pelo momento bonito a que estão a assistir.

É um freak show. Tudo é ruído, tudo é uma caricatura e como caricatura um exagero que tende para o desfigurado.

É, não preciso fazer de conta que não sei, um programa líder de audiências. Como outros idênticos. 

O que é que isto tem a ver com educação? Tudo.

Não tenho a presunção de acreditar que os bons programas são apenas os programas bons. Cultos, sérios, pedagógicos. A televisão é - também - espectáculo e o espectáculo é fundamental nas nossas vidas. Precisamos de rir, de sonhar, de nos evadir. E há gente muito capaz, talentosa e disponível para o fazer.

Dizem que o bom espectáculo - como a boa informação - não chega. Não faz número. Não vende patrocínio. 

Os mesmos que dizem isto - e que são, em regra, quem opta pelos modelos cada vez mais de caricatura - mostram-se também eles ora pesarosos (ninguém gosta de ver estas feiras de vaidades ou esta exploração de natureza humana ou esta absoluta patetice, afirmam em círculos privados) ora cínicos (é isto que a malta quer e não venham com histórias porque toda a gente vê). Pesarosos ou cínicos, demarcam-se dos seus fregueses, a audiência que adere aos programas e que de uma forma ou de outra afirmam desprezar. Porque eles, naturalmente, não são assim! Só fazem estes programas porque tem de ser. Porque é preciso facturar e porque devemos dar às pessoas aquilo que elas querem.

O que é que isto tem a ver com educação? Tudo.

Os media vistos como um negócio como qualquer outro é tão perigoso como os museus, a música, o cinema ser visto como um negócio como qualquer outro. E sendo eu furiosamente contra uma cultura de subsídio-porque-sim-porque-somos-intelectuais-e-diferentes, consigo preferi-la a esta não-cultura de que nada se faz se não der dinheiro e tudo se faz para ganhar qualquer dinheiro.

Vai custar muito caro. E, pode ser, irremediável e irrecuperável.

Precisamos de pessoas cultas, responsáveis, comprometidas com um sentido de progresso e de civilização. Precisamos que estas pessoas estejam envolvidas nos processos de decisão do que vemos em televisão.

Precisamos que os anunciantes sejam também essas pessoas - não precisam deixar de vender detergentes, arroz, telemóveis ou carros. Mas podem vendê-los sendo parte de algo melhor e não explorando o que a natureza humana tem de menos bom e o que um país pobre tem demasia, ignorância e vertigem da fama.

Ou então podemos não fazer nada.

O tempo fará alguma coisa. Seja mostrar-nos um dia, tavez da pior maneira, que a educação conta. Seja já no tempo mais curto, em outubro deste ano, com a opção para muitos de ter uma oferta de uns tipos que ninguém conhecia e de que agora todos falam

Não resisto a terminar com um excerto do 'Submissão' sobre as coisas que não servem para nada.

"Como se sabe, os cursos universitários da área de Letras não conduzem a praticamente nada, excepto, para os estudantes mais dotados, a uma carreira de professor universitário na área de Letras - em suma, a situação bastante bizarra de um sistema sem outro objectivo senão reproduzir-se a si próprio, tudo acompanhado por uma taxa de insucesso superior a 95%. Porém, trata-se de estudantes não nocivos que podem até apresentar uma utilidade secundária. Uma jovem candidata ao emprego de vendedora nas lojas Céline ou Hermès deverá, naturalmente,e em primeiro lugar, cuidar da sua apresentação; mas uma licenciatura ou uma pós-graduação em Letras Modernas poderá constituir um trunfo complementar e, à falta de competências úteis, garantir ao empregador uma certa agilidade intelectual, abrindo a possibilidade de evolução na carreira - tendo a literatura, além disso, uma conotação positiva na área da indústria de luxo".

 

Cartoon: Larry Wright - The Detroit News

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por sparks às 09:29

Domingo, 24.05.15

A vida sem pausa

24-7-2

 

A vida sem pausa é o título de um artigo escrito por Jonathan Crary, professor de Historia de Arte Moderna na Universidade de Columbia. É um texto premonitório de um livro obrigatório de ler: 24/7.

 

É um dos textos mais lúcidos que li nos últimos tempos.

Claro, transparente.

É um dos textos mais assustadores que li nos últimos tempos.

Negro, cheio de abençoadas sombras.

 

Não sou apologista de copy/paste e acredito que quem quiser - mesmo - lerá.

Por isso, aqui, faço apenas o papel de uma leitora privilegiada que deu com os olhos num texto que precisava de ser lido. Mas leiam, leiam.

 

Sobre a não interrupção, a ausência de um tempo 'fora' do mundo:

24/7 significa que no hay intervalos de calma, silencio, o descanso y retiro. Igualmente importante es que se trata de una condición de exposición y visibilidad permanentes, un mundo iluminado ininterrumpidamente en el cual nada de lo íntimo puede permanecer oculto o en el ámbito privado.

 

Sobre a bem-aventurança do sono (e do sonho):

El sueño es una interrupción intransigente del robo de nuestro tiempo por parte del capitalismo. Nuestro actual sistema económico mundial de mercados 24/7 y de producción y consumo incesantes es fundamentalmente incompatible con la pausa de inactividad del sueño humano.

 

Sobre o facto de o descanso ser demasiado caro para a economia global:

Un entorno 24/7 tiene la apariencia de un mundo social, pero en realidad es un modelo no social de conducta maquinal y una suspensión del acto de vivir que encubre el coste humano exigido para sostener su efectividad.

 

Sobre o trabalho:

24/7 es un tiempo de indiferencia, frente a la cual quedan al desnudo la fragilidad y la precariedad de la vida humana, y en el que el sueño no es necesario ni inevitable. Con respecto al trabajo, hace verosímil, incluso normal, la idea de trabajar sin pausa, sin límite.

 

Sobre o saque imparável:

Actualmente, en todo el planeta está teniendo lugar una frenética orgía ininterrumpida de saqueo y acumulación, ya sea la fracturación hidráulica, la minería del carbón, la perforación submarina, la agroindustria, el refinado tóxico de minerales o la contaminación de los océanos y los ríos.

 

Sobre a paciência e a democracia:

El sistema 24/7 también mina la paciencia y la deferencia individuales que son cruciales para cualquier forma de democracia directa: la paciencia de escuchar a los otros y de esperar a que llegue el turno para hablar.

 

Sobre filhos, família, futuro:

Para aquellos de nosotros que tengamos hijos, significa abandonar las expectativas imposibles y desesperadas de éxito profesional y económico que les imponemos, y proporcionarles en cambio visiones de un futuro habitable compartido colectivamente.

 

Se quiserem ler mais:

24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep by Jonathan Crary – review

 

 

 

 

 

 

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por sparks às 21:11

Sexta-feira, 22.05.15

Não é por ser meu filho

Time-spoof-cover

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(a capa da Time de 20 de Maio de 2013 e uma versão alternativa, fake se quiserem, com o ponto de vista de quem é chamado de narcisista)

 

Alguns dos que por aqui passam sabem que sou mãe. Quem me conhece bem, passe ou não por aqui, sabe que para mim esse é o papel principal da minha vida. Faça o que fizer, nada será tão importante quanto criar os meus filhos, acompanhar os meus filhos, viver vida-fora com os meus filhos.

E, como qualquer mãe ou pai, cometo erros, sou dada a avalanches emocionais, perco muitas vezes a objectividade. A frase 'não é por ser meu filho' é das mais sinceramente aldrabonas que conheço. Claro que é por serem nossos filhos, e claro que acreditamos que a nossa objectividade não é esmagada pelo amor incondicional que lhes temos. Essa sinceridade mentirosa só não a conhece quem não ama os filhos da maneira que os filhos se amam.

Como não acredito que haja 'amor a mais', isto que hoje escrevo é sobre outra coisa.

Não é sobre os nossos filhos - é sobre nós. Os pais, os que foram pais, nos últimos 20 anos.

A maternidade e a paternidade mudou. Em muitas coisas, mudou para melhor.

Noutras, tenho dúvidas.

E, sendo mãe de filhos adolescentes que em alguns anos estarão no mercado de trabalho, estou a passar uma fase especialmente bipolar. Em que olho como o mundo do trabalho irá receber os meus filhos, mas também como os meus filhos irão entrar nesse mundo do trabalho.

Esta manhã ouvi uma conversa enquanto tomava o pequeno-almoço num café. Duas mães de garotos de 10 ou 11 anos discutiam à exaustão o teor das provas de exame. Sabiam de cor as perguntas, as composições, o que era suposto sair. Indignaram-se com o esforço excessivo colocado às crianças. Aquele tema não era para uma criança de 11 anos, jurava uma delas. Não discuto o teor dos exames - já passei por aí, passo por outros agora. Tenho fama cá por casa de ser a má da fita. 'Achas sempre que os professores têm razão'. Não é verdade. Não acho. O meu filho já foi gamado à grande num exame. A minha filha já perdeu muitos pontos por dar as respostas certas pelo caminho não convencional. E, claro, 'não é por serem meus filhos', mas já me aborreci muito com isso.

Mas detesto vitimizações. 

E quando observo a entrada de algumas destas crianças-entretanto-jovens-entretanto-adultos no mundo profissional vejo demasiada vitimização.

Vitimização de jovem em empresa grande: ninguém me liga nenhuma, estou p'rá ali sozinho e sem qualquer acompanhamento.

Vitimização de jovem em pequena empresa: não me dão nenhum valor, nem qualquer oportunidade de mostrar que posso fazer a diferença.

Vitimização de jovem em startup: isto é uma desorganização, já não acredito no projecto, andam a fazer a não sei quantas coisas ao mesmo tempo.

Por aí fora.

Em casa, muitos pais indignam-se como quando eles tinham 11 anos e iam fazer exame de português.

"Não é por ser meu filho" mas aquela empresa não o merece.

As generalizações não são boas para ninguém. Há empresas que só exploram. Há empresas vesgas. Há empresas incapazes de formar qualquer pessoa, jovem ou menos jovem.

Mas, na maior parte dos casos, há empresas com a sua vida diária, o seu negócio a decorrer, e muitas prioridades a correr em várias pistas.

Que não páram porque o 'nosso' filho' entrou nos quadros. Que não o vêem como filho. Empresas para as quais é mais um - até provar que é diferente.

Esta nossa overdose de parentalidade não os ajuda em nada. Este mantra de és-tão-bom-tão-melhor-que-tudo faz com que muitos sejam incapazes de resistir à primeira contrariedade, ao primeiro não, à insuportável máxima 'do que tem de ser tem muita força'. Porque foram criados para não serem vencidos nunca, para não serem ignorados nunca, para não não-estarem em primeiro plano nunca. 

É pena. Muitos deles são de facto muito bons. A maioria beneficou de uma educação e de uma disponibilidade - emocional e material - de pais e da família como nenhuma outra geração antes teve. 

E porque lhes queremos bem, o melhor que podemos fazer é ... menos. E menos, ao fim de algum tempo, será mais.

 

next morning update:

Vale a pena ler este artigo. As coisas vistas pelos próprios. E esse facto consumado que é a adolescência prolongada. 

We millennials lack a roadmap to adulthood

 

E vale a pena ler este. Porque os miúdos que cresceram tratados como 'rockstars and princesses' não estão condenados a serem uns preguiçosos imprestáveis.

19 Months In the Me Me Me Generation

 

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por sparks às 00:15

Quinta-feira, 14.05.15

Pode devolver-me o meu clique?

Devia ser possível. Tal como devia ser possível fazer dislike e não apenas like e voto contra em vez de ter de escolher outro qualquer partido que nem nos interessa assim tanto como 'voto a favor'.

A caça ao clique assume proporções gritantes.

Editores, jornalistas, vendedores de publicidade, gestores de media, profetas da next big thing, estamos todos desesperados. E o desespero assenta-nos tão mal.

Trabalho num meio de comunicação digital. Onde as notícias e as não-notícias são medidas ao segundo. Qualquer um de nós, editor, sabe quase instantaneamente o 'que vai dar' e o que 'não vai dar'. É pior acertar do que não acertar. Porque é uma espécie de cheiro a queimado - não deixa dúvidas. E está a perverter o trabalho de muitos e bons jornalistas, de muitos e bons editores. 

Há meia dúzia de regras básicas e estamos todos, aparentemente, a achar normal sermos avaliados por essas regras.

O título tem de criar suspense. Porque o suspense leva ao clique. Por exemplo: saiba como se chama a nova princesa. Não interessa nada. É um fait divers de página cor-de-rosa promovido a notícia de primeira linha. Mas convém que o título seja 'saiba como se chama a nova princesa' ou algo parecido. E não algo estupidamente óbvio como a nova princesa chama-se Charlotte Elizabeth Diana.

Um conteúdo - note-se, conteúdo, não artigo - ganha outro interesse - leia-se comercial / audiência - se puder ser desmultiplicado em lista. Se a lista puder ser ilustrada em galeria de fotos, melhor ainda. E assim temos as 15 coisas que nunca deve dizer ao seu filho e as 10 coisas que deve sempre dizer ao seu filho, bem como os 20 alimentos que lhe salvam a vida e os 15 alimentos perigosos para a saúde. Tudo gráfico: uma imagem, um título, uma legenda, explicações breves, tantas vezes parcas e incompletas, mas completamente ajustadas à atenção disponível desta nova espécie que andamos a treinar, o leitor online.

E, claro, há o preço. A cotação no mercado online mede-se em RPM - Receita por cada mil cliques. Se o RPM for de 2 euros numa determinada campanha, significa que 1000 leitores valem 2 euros.

Se o RPM foi de 9 euros, valem 9 euros.

Caro leitor, você não vale nada feitas bem as contas!

Um bom artigo - leia-se com boa audiência e não gerado por mera caça ao clique - pode valer, num meio mass market, 3 mil views, 5 mil views, 10 mil views. Na melhor cotação, vale no máximo, 90 euros.

A sério?

Queremos mesmo perpetuar nestes parâmetros os erros primordiais de um tempo que não sabia o que a internet iria trazer? Ou temos alguma inteligência restante para perceber que já é tempo de mudar regras antes de termos um mundo (ainda mais) inundado de parvoíce, superficialidade e mera caça ao clique?

 

Update a 14 de maio

 

Há dois dias escrevi sobre a imbecilidade e o embuste que se vive no reino digital. Ontem recebi várias mensagens sobre o assunto. E é curioso perceber que a maior parte das pessoas não percebe que - comercialmente - vale muito pouco para os anunciantes ou para as agências que negoceiam por eles. Se 1000 cliques valem 2 euros, cada um destes cliques vale ... 0,002€. Que os conteúdos valham pouco e que a malta que os produz ande à rasca há mais de uma década, é uma coisa; que todos nós, porque todos somos leitores, valhamos muito pouco, é outra. Não sei, mas de repente pareceu-me que se calhar devíamos falar mais desta perspectiva para ver se 'isto' deixa de ser um problema dos coitados-palermas-tinham-a-mania-que-eram-bons dos jornalistas.

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por sparks às 00:51

Quinta-feira, 07.05.15

Uns são novos há mais tempo, outros há menos. É só essa a diferença.

image

 

Vir aos Prémios Novos é óbvio. Por causa do Alvim, por causa de todos os 'Novos' que aqui se encontram, pela carolice, pelo modo feel-good do evento.

Vir aos Prémios Novos e ouvir o Júlio Isidro a falar de televisão, de talento, dele próprio com ironia, humor e muita sabedoria é um grande bónus.

Vir aos Prémios Novos e ainda fechar a noite com a Mariana Mortágua é um twist de mestre. E a prova que isto anda tudo ligado.

 

Tudo sobre os Prémios Novos aqui: https://m.facebook.com/PremiosNovos

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por sparks às 01:05

Sexta-feira, 01.05.15

O mundo do trabalho está em burnout.

samba

 

Burnout. Há cerca de três semanas li um artigo da Visão sobre pessoas que fritam. Fritar, como o próprio artigo refere, é o português coloquial para esgotamento, implosão, explosão. Li o artigo e, na realidade, não o li. Passei os olhos, incomodada. E desviei os olhos, acossada por um qualquer pressentimento que ler o artigo do princípio ao fim me deixaria preocupada, irritada, deprimida. Esgotada.

 

Samba. Na mesma semana fui ao cinema ver "Samba", um filme francês da mesma dupla que realizou "Amigos Improváveis", Éric Toledano e Olivier Nakache. Conta a história de um, mais um, dos milhares de imigrantes que procuram na Europa a miragem de dignidade que lhes é negada pela miséria, pela guerra ou estas e outras combinações, todas de sinal negativo. Foi um Samba senegalês, um calmeirão de sorriso aberto, um bom tipo, que atravessou uma noite qualquer minha de semana e me deixou desde então sem conseguir racionalizar a nossa irracionalidade. Um Samba que se cruza no filme com uma Alice francesa, branca, trabalhadora 'qualificada' de uma qualquer multinacional que fez burnout. Os dois juntos encarregaram-se de me tirar do meu sossego. A carne dele e o espírito dela, ambos tratados como commodities sem valor especial. A força dele, a força do músculo dele, a única que os empregadores vêem. De resto, a invisibilidade. A mesma invisibilidade que assalta salas de reuniões e gabinetes cheios de civilização e de tecnologia e que um dia levam alguém a partir um telemóvel na cabeça do colega. (Alice fez burnout ao partir um telemóvel na cabeça de um colega)

 

Dias nisto.

E dias depois mais de 800 pessoas foram ao fundo. Literalmente.

E no dia a seguir ao maior naufrágio de sempre no Mediterrâneo, li a história de várias mulheres que tiveram de espremer as mamas para provar que não estão a falhar com as suas obrigações laborais. Em Portugal.

Hoje é  Dia do Trabalhador, ainda não rebaptizado para Dia do Colaborador (nem vos sei dizer o quanto a expressão colaborador me dá urticária ... pessoas que colaboram em vez de pessoas que trabalham, define de certa forma bem o que algumas empresas esperam do ser humano). E na semana que antecedeu o Dia do Trabalhador, os protagonistas foram os senhores de um sindicato e de uma empresa que, na sua elevadíssima superioridade, são a prova material da irrelevância dos sindicatos no século XXI.Tão artificiais e datados como os posters que anunciavam companhias aéreas com os rapazes e as raparigas sorridentes e fardados a rigor. Enquanto se comportarem como se o mundo tivesse parado no pós-guerra e no boom de qualidade de vida dos anos 60, são apenas parte do problema e nada contribuem para a solução. Só têm direitos - os seus direitos. Não são melhores do que aqueles que dizem que os portugueses estão pior, mas o país está melhor.

O mundo do trabalho está em burnout.

Burnout a precisar de samba.

 

P.S - Não deixem de ouvir a banda sonora do filme Samba. Fiquem com este clip para abrir o apetite.

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por sparks às 11:44


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