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Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
No fim de semana passado, a crónica do Padre José Tolentino Mendonça no Expresso era, mais uma vez, straight to the heart. Não o leio todas as semanas, mas sempre que leio, as palavras que escreve ficam-me na memória. Uma outra crónica, também deste ano, intitulada 'O sal da vida' vive na minha mesa da cozinha desde há seis meses. Só porque de vez em quando preciso de voltar àquele texto e àquelas palavras. Tem um aspecto - como podem constatar na foto junto - 'usado'. Já lá passaram alguns pequenos-almoços, já vários amigos pegaram desinteressadamente na revista e acabaram a ler a crónica até ao fim, já teve cestos da roupa em cima, travessas de comida, compras ao sábado. Mas foi e vai ficando. Nesta crónica, José Tolentino Mendonça fala de Françoise Héritier, uma antropóloga com 80 anos, convidada para 'a cadeira que Lévi-Strauss deixou vaga no Colégio de França'. E a partir daqui conta-se a história de um bilhete postal enviado por um amigo à antropóloga onde é usada a expressão 'roubei esta semana para umas breves férias'. Héritier escreve então uma carta, sem destinatário, sobre o nosso uso do tempo, sobre a voracidade dos nossos dias.
"A verdade é que privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia, o que é, se não isso?"
No sábado passado, José Tolentino Mendonça escreveu sobre o perdão. desculpem, escreveu com uma generosidade comovente sobre o perdão. Não sei se existia uma mensagem também subliminar ao outro perdão, o dos abutres, vulgo o da dívida, talvez sim. Gosto de pensar que sim. Mas, na realidade, o que li foi sobre o perdão entre todos nós, na nossa vida diária, o perdão como uma forma de progresso, de novo dia. O que li era para todos nós, o que li era para mim num ano em que, em vários momentos, naquele optimismo com a espécie humana que me tem acompanhado, fui obrigada a conviver com o lado negro da força, a natureza humana no seu estado de mesquinhez e obscurantismo.
E estão ali as palavras escritas. "Todos precisamos de perdão. O perdão instala um corte positivo, interrompe a baba inútil de tristeza, esta maceração que nos faz infelizes e nos leva a esmagar os outros de infelicidade".
E é tão isto. Lembrei-me que há uns anos, por uma razão que na distância do tempo me parece tão absolutamente inútil, tive uma zanga com uma das pessoas que me é mais querida. Durou meses. Um dia conversámos e essa pessoa perguntava-se se já me tinha esquecido da razão que nos levara a zangar. Eu, feliz com o reencontro, disse-lhe que não me tinha esquecido mas que tinha decidido não me lembrar. E que bela decisão essa foi.
"Tão facilmente ficamos atolados em becos cegos, em círculos sem saída, reféns de uma amargura que cada vez mais vai sendo mais pesada e contamina inexoravelmente a vida. O ato de perdão é uma declaração unilateral de esperança. O perdão não é um acordo. (...) Perdoar é crer na possibilidade de transformação, a começar pela minha." Ou seja, não conseguindo dizer melhor do que quem escreveu, o perdão é um acto de liberdade, talvez da liberdade mais libertadora, passe o pleonasmo, a que nos faz seguir em frente.
José Tolentino Mendonça acrescenta ainda um pormenor, que tantas vezes é tudo menos pormenor: "muitas vezes aproveitamos a dor para nos instalarmos nela. Preferimos a esgravatar na ferida, a comer diariamente o pão velho da própria maldade em vez de termos sede de beleza, desejo de outra coisa. (...)
Ora, para perdoar é preciso ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há. O perdão começa por ser uma luzinha. E é bom insistir e esperar. O sol não brota de repente."
Ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há é provavelmente a melhor declaração de vida que li nos últimos tempos. E é tão estranhamente verossímil esta descrição. Pensem lá, nos vossos trabalhos, nas vossas famílias, quantas pessoas encontram presas ao que correu mal, com um prazer tortuoso no que correu mal e em prolongar a vida do que correu mal, mesmo quando já não corre assim tão mal.
Precisamos de interromper esses ciclos. De perdoar. De perdoar-nos também. Para seguir em frente.
E volto ao texto sobre o sal da vida:
"Há uma leveza, uma graça singular no puro e simples facto de existir, para lá de todos os compromissos profissionais, dos sentimentos intensos, das lutas políticas e humanas: é disto e de nada mais que vou agora procurar falar. Desse minúsculo não sei o quê a que chamarei o sal da vida".
Há uma lista abolutamente extraordinária que se segue de actos de 'puro acto de existir'.
- 'Recordar-se sem vergonha das imbecilidades que fizemos lá atrás'
- 'dançar maravilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock'n roll'
- 'passar uma noite em branco para ler até ao fim um romance'
- 'improvisar durante a semana um jantar de amigos'
- 'não conseguir recordar-se da sequência de uma anedota apesar de todos os esforços'
- 'preparar uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga) herdada da avó,
- 'respirar devagar e de olhos fechados num prado'
- 'reencontrar no armário o calçado de verão quando ainda é inverno'
- 'pensar com prazer nos encontros que nos mudaram a vida'.
Termina com 'ser feliz quando os outros são'.
Para a minha amiga Catarina, que fez anos esta semana e que me/nos lembra sempre que pode que o tempo é para ser vivido, e para a minha amiga Helena, a minha antropóloga de serviço, com quem partilho há uma vida a liberdade de errar e de perdoar (à vez).
Além de todos vocês, claro.
Pequeno resumo para quem não leu a entrevista de Clara Ferreira Alves ao ex-primeiro-ministro José Sócrates. O homem estudou e precisa dessa legitamação 'intelectual'. Acho bem, mesmo pecando pelo excesso de efeitos especiais. (se tivesse sido enxovalhada publicamente por ter obtido méritos académicos por favor, faria o mesmo, seria mesmo a minha prioridade número 1). O homem não tem pejo no uso da palavra. Uma merda é uma merda, um estupor é um estupor ('a merda' da política e o 'estupor' do Schauble, ministro alemãos das Finanças). Acho bem, mesmo com o desconforto de ser dito na 'estilo' Sócrates. Estou absolutamente farta da tribo que para dizer 'vou-te lixar' diz que 'vamos proceder a um ajustamento tendo em vista a correcção de problemas estruturais'. O homem não se verga (mesmo quando, às vezes, devia aceitar a vénia). Acho bem, mesmo que haja aquela grande dose de teatro própria do protagonista. Num país que vive a pedir desculpa, a curvar-se perante a força e não perante a razão, num país que perdeu respeito por si próprio, sabe bem algum desplante, mesmo alguma desta teatralidade.
Diz que chove no sábado e no domingo e, na realidade, não me importo nada.
Vai saber bem. Sabe bem cozinhar enquanto chove lá fora. Sabe bem ler enquanto chove lá fora. Sabe bem ver um bom filme, depois de uma quantidade razoável de argumentos esgrimidos na escolha, enquanto chove lá fora.
E como chove, este fim-de-semana levo para casa coisas para fazer em casa. Mais uma vez, ninguém me pediu opinião, mas há aqui umas ideias que podem achar piada.
É um projecto do artista inglês Banksi. É um projecto do artista inglês Banksi durante a sua estadia de um mês em Nova Iorque. Além da arte propriamente dita, Banksi tem graça (o que confere com uma certa teoria que tenho em que o sentido de humor é fundamental a qualquer tipo de criaçao).
Banksi publica todos os dias, desde XX, no site Better Out than In uma imagem alusiva ao seu 'trabalho' diário nas ruas de NY. Além da imagem, há sempre um ficheiro de audio associado que permite ouvir as histórias, os percursos, as divagações desta imersão nova-iorquina. Algumas imagens são simplesmente prodigiosas na sua simplicidade.
O mayor de NY não gostou. Michael Bloomberg acha que“o graffiti estraga a propriedade das pessoas e é um sinal de decadência e de perda de controlo”. Bloomberg acha também que "há alguns lugares para a arte e alguns lugares sem arte.”
E posto isto, a polícia nova-iorquina achou por bem localizar Banksy. Sem sucesso, porque inglês está longe de ser o tipo de figura que se fotografa em festas e red carpets e que todos reconhecem.
Em compensação, mostrou uma vez mais o seu sentido de humor face à capa do New York Post que remetia para a busca da polícia com: “Get Banksy!”
Banksi respondeu no seu site: “Eu não leio aquilo em que acredito nos jornais”.
Mais sobre esta deliciosa novela:
Ágata, lembram-se? Podes ficar com a casa com o carro, com o gato, mas não fiques com ele?
Ágata.
Ágata celebrou 40 anos de carreira (40?!!!) e os On The Hop estiveram lá. O Tiago Presley esteve lá (alguém tem de dar atenção a este miúdo).
E o resultado foi este. Filmagem improvisada mas uma conversa que muita 'gente grande' não faria tão bem. Bom para ver em família, mais novos e mais velhos, unidos em torno de símbolos nacionais.
E da Ágata para ... Gay Talese. Uma prenda do Nuno Vargas que me enviou esta conversa, esta conversa.
Gay Talese é aquele tipo que qualquer pessoa que gosta de ouvir histórias quer conhecer.
Gay Talese é aquele tipo que qualquer pessoa que gosta de contar histórias quer conhecer.
Gay Talese conta histórias como ninguém e acredita que é essa a essência do jornalismo.
Curiosidade é a palavra-chave. Não há jornalismo sem curiosidade, sem querer saber, sem interesse genuíno pelo outro e pelos outros.
Em cima disto é preciso depois a elegância para saber distinguir o que se diz por aí do que se diz por aqui.
Ele faz isso tudo muito, muito bem.
Além disso dá esperança a todas nós, mulheres que conversam compulsivamente sobre as suas vidas (e, vá lá, às vezes, só às vezes, sobre as dos outros). Há um sentido para essas conversas. Tipos como Gay Talese um dia foram garotos e ele garante que foi com a mãe que aprendeu a fazer as perguntas certas (as que não perturbam o fluxo do diálogo), a ser elegante e a ter sempre novos motivos de curiosidade.
Uma conversa para escutar e saborear com uma chávena de chá.
A journalist's life (o livro é na realidade, A writer's life)
Guerra ao trigo. Já ouviram? O trigo é perigoso. As moléculas estão adulteradas. Engordamos por causa do trigo. Ficamos irritáveis por causa do trigo. O nosso 2º cérebro (intestino, pois) não gosta deste trigo.
A mim, foi-me tudo comunicado assim, com muita ciência, por uma excelente cientista e de então para cá (2 meses) tenho vindo a dedicar-me a alternativas.
A grande treta é que há trigo em todo o lado. Há trigo invisível. A lista é interminável e asfixiante.
Só dura uma semana esta fase. Depois ficamos compulsivamente viciados em ler rótulos, fazemos apostas connosco mesmos sobre a composição que iremos descobrir neste naquele produto, trocamos pequenos segredos com as amigas da 'seita' mas, meslhor do que isso, descobrimos um misterioso mundo novo onde não há trigo e com ao qual não tínhamos sido apresentados.
Nestas semanas, descobri pão de quinoa (maravilhoso), pão de batata doce (idem), massas variadíssimas sem trigo.
Este fim-de-semana vou experimentar fazer um bolo com farinha de alfarroba que irá ser devidamente levado à mesa com marmelos assados no forno à moda da minha avó. Depois conto.
Sobre o trigo, quem quiser, sirva-se:
É voz comum dizer-se que é tudo uma questão de atitude.
Não sei se será verdade com tudo, tudo. Mas, em algumas situações, é de certeza.
Por exemplo, face ao dinheiro ou à falta dele. Podemos pensar em tudo o que vamos deixar de fazer porque não temos dinheiro. Ou então pensamos em tudo o que temos de fazer para não deixar de fazer as coisas que gostamos ou precisamos. Ou ambos, devidamente compensados.
Vem isto a propósito da ignomínia que reina quando o tema é a dívida, as dívidas, a falta de dinheiro, a falta de emprego, a falta de investimento em Portugal.
Não ouvimos mais nada há três anos que não a palavra corte. Nunca ouvimos nada sobre como vamos ganhar mais dinheiro (a sério). Ou como vamos criar mais emprego (a sério). Ou como vamos bater-nos por uma política diferente e não apenas seguidista (a sério). Ouvimos sempre 'menos' e nunca 'mais'. E não tenho qualquer dúvida que há muitas contas de menos essenciais, as crises mostram sempre a ineficiência e o desperdício. Mas não há memória de nenhum país que tenha vencido uma crise sem olhar para o 'mais', sem perceber que a esperança é tão essencial como a moeda.
No início eram os cortes da magnífica austeridade, o extraordinário plano da troika que nos iria purificar dos erros cometidos.
Depois, passámos ao Estado de guerra civil. Os 'privilegiados' da Função Pública versus os 'sacrificados' da iniciativa privada (ui, e o que se podia escrever sobre isto, de um lado e de outro).
No último ano, sobretudo depois do fracasso da TSU/15 de Setembro 2012, a discussão passou de ideológica (liberais da treta versus sociais democratas também da treta) a pornográfica. Não encontro outro termo. Colocar nos mais velhos a 'culpa' das reformas para as quais contribuíram uma vida é pornográfico. Incutir nos mais novos uma sanha assassina em relação aos velhos que lhes roubam os empregos (esses velhos de 45 anos ...) ou lhes sugam os descontos (para os que trabalham) é um corte nas entranhas. No país, na sociedade, na razão porque permanecemos juntos.
Depois de estarmos todos devidamente entrincheirados, sobra o quê? Um darwnismo do chica-espertismo? O chico mais esperto de todos? E fazemos o quê?
Nada me irrita mais do que as soluções únicas. A derradeira opção. E tudo isto é sempre apresentado assim - não há opção. Cobardemente, face a cada contestação, lá se descobrem outras opções. Porque, naturalmente, há sempre outras opções.
Na semana passada, depois da fuga de informação organizada (e que bem!), depois da demagogia empoleirada em dois plafonds de vida, o do 600 euros e o dos 4000 euros, voltou a ser injectado o Estado de guerra civil. Os 'pobres' dos 600 euros contra os 'ricos' dos 4000 euros. Mesmo que os 'ricos' tenham contribuído uma vida inteira para essa 'riqueza'.
E foi então que soubemos que afinal não se é rico aos 4000 euros, mas sim a partir dos 2000 euros. Porque - mais uma volta no Estado de guerra civil - há velhinhos e velhinhas que vivem com 170 euros. Depois do que ouvi e do que li, só me sobrava uma pergunta: ainda não é pobre? É isso que o Estado, este Estado, nos está a perguntar a todos. Ainda não é pobre? É que se não é, temos de tratar de si. Temos de fazer de si pobre. Para nos purificar. Para nos tornar a todos iguais no estado de 'miseráveis'. E, no fim, sobrarão só miseráveis e gente importante que decide sobre os miseráveis.
Eis o Estado forte com os fracos. Eis o Estado fraco com os do costume, sempre os do costume. Eis o Estado que não quer ter outras opções - isto não é um erro, uma incapacidade, uma perturbação - é um acto de vontade.
E eis um país em que os cidadãos são sitting ducks. Na mira. Por isso, é cada vez mais difícil falar do que corre bem, das empresas que estão a vender mais, das instituições que conseguem fazer coisas acontecerem. Se for público, o mais provável é, no dia seguinte, terem o fisco à porta a perguntar-lhes: ainda não é pobre? Temos de tratar de si.
Com o fim de semana à porta, acabo de reparar que levo na bagagem várias´pérolas' que aqui deixo a título de sugestão. Sim, ninguém pediu, mas acreditem que não vão mal servidos.
A ler: Terror ao Pequeno-Almoço - A gestão como preferia não conhecer
Escrito por três excelentes cabeças, três cavalheiros que dão pelo nome de Rui Grilo, João Vieira da Cunha e José Manuel Fonseca.
Vou escrever um destes dias sobre isto, mas para já quero terminar de reler um livro que tive o privilégio de ler em manuscrito (e ainda por cima com permissão para meter o bedelho).
Para todos os que conhecem, conheceram, vivem, viveram, aquela coisa que se designa por ambiente corporativo, vulgo, a vidinha dentro das empresas, têm aqui matéria-prima para rir, chorar e sobretudo pensar.
A ver: Cova do Vapor - Um dia a casa virá abaixo
É um web-documentário. É uma reportagem. É filmado pela Vera Moutinho e tem design de um senhor que também deixou muito boas memórias no SAPO, o Dinis Correia. Está muito bem feito e é uma bela história.
A ver, mas no cinema: Hannah Arendt
O cartaz diz simplesmente: as suas ideias mudaram o mundo. A mim, fizeram-me mudar de ideias sobre várias coisas e sobretudo sobre o ensino da Ciênca Política.
Dos jornais levo ainda para casa:
P3: Obrigam-nos a perder amigos
"Os resistentes por cá ficam. Lutam e crêem que é aqui, neste lugar, que hão-de ser felizes. Se alguém não os obrigar a fugir à procura de dias melhores. Como fizeram ao Grilo. Os que ficam dizem adeus, até sabe-se lá quando. Foi isso que fizeram aos resistentes que ficam. Como a mim, que me tiraram o melhor amigo."
Um dia destes também gostava de escrever sobre isto. Para já, muitas ideias e emoções ainda misturadas.
Jornal i: Até que a morte não nos separe
É uma história triste, tristíssima.
É uma história que seria só de exploração humana contada de outra forma. É uma história que seria uma breve para algum jornalismo 'de referência'.
É uma história que eu teria todas as probabilidades de não ler, mas que escrita desta forma, por uma jornalista que não conheço e que se chama Sílvia Caneco (salvé Sílvia!) torna evidente uma das razões pelas quais o jornalismo faz falta. Para nos obrigar a ir a paragens que não iríamos, para nos tirar do sol calmo da tarde, para nos lembrar que podemos, todos nós, fazer alguma coisa.
Bom fim de semana
Em tempos de crise acontecem coisas estranhas. Algumas boas, algumas más. Em tempos de crise e de grandes dificuldades, por exemplo, há ditadores que se afirmam. Em tempos de crise e de grandes dificuldades, por exemplo, há pessoas extraordinárias que mudam o rumo dos acontecimentos. Portugal está em crise há mais tempo do que todos temos memória. Mesmo quando não estávamos em crise, na realidade, não tínhamos deixado de estar.
Vem isto a propósito de este fim-de-semana ter, supostamente, batido num carro num parque de estacionamento.
Confusos? Eu explico.
Fui almoçar com a minha amiga Helena a um centro comercial. Almoço tardio, já passava das 3 da tarde. Chegámos ao parque, ensaiei estacionar num primeiro lugar, e com o sábio conselho de quem me acompanhava, percebi que era talvez carro a mais para aquele espaço ou para a minha destreza / minúcia no estacionamento.
Estacionei duas filas adiante e ficámos mais de 3 horas - 3 horas, sublinho - no dito parque.
Almoço, café, conversa, shop-seeing.
Quando regressamos ao parque, temos um carro a trancar a nossa saída com um papel no tablier que dizia apenas, em jeito de loja em horário de almoço, 'volto já' seguido de dois números de telemóvel. Enquanto, com razão, a minha amiga praguejava, eu reviro a mala à procura do telefone. Ligo, ao mesmo tempo que ambas reparamos num papel colocado na porta do carro. Ainda tentamos ler a missiva, mas entretanto somos cercados por mãe e filho, respectivamente o dono do carro que nos trancou e a dona de um outro carro estacionado no mesmo parque. Ainda não tinha tido tempo de dizer nada e já estava a ser literalmente bombardeada com o facto que bati num carro (o da senhora), fugi (para longe, está bom de ver, duas filas à frente), mas fui 'apanhada' porque houve um cidadão honesto (o autor da missiva na porta do carro) que viu e que tratou de me por na linha, ao mesmo tempo que deixava uma missiva ainda mais detalhada no carro da lesada, à qual, que nem Batman salvou de um perverso (a) vilão (ã).
Bom. As mulheres são distraídas, é bom de ver, e duas mulheres, amigas, em tarde de sábado, são duplamente distraídas. E perigosas, como vamos ver. Estas duas mulheres, distraídas e perigosas, não tinham dado pelo facto de terem abalroado um carro (ainda por cima novinho, com 7 dias, ainda por cima com matrícula espanhola, que a senhora mora em Madrid).
Ainda não recompostas do efeito 'bloqueadas-apanhadas-acusadas', vamos de passo miudinho até ao carro da senhora. Pelo caminho, curto, menos de 20 segundo, tive antevisões de portas abalroadas, para-choques descaídos, faróis partidos. A tragédia, o horror, a calamidade. A somar à estupefacção e algum terror secreto pelo meu alheamento (como é possível, como é possível???).
Chegamos ao carro da senhora e passo a acreditar que tenho um problema maior de visão do que aquele que os meus óculos exigem. Onde está a batida? A porta abalroada? O para-choques destruído? 'Desculpe, mas bati onde?'. Aqui. Aqui??? Onde? 'Aqui, não vê?'. Não, não vejo, não, não víamos. Tive de me agachar e colocar quase o nariz no para-choque para lá conseguir descortinar um arranhão, provavelmente resultado (tenho de acreditar que foi) da minha tímida tentativa de estacionar no primeiro lugar.
A dona do carro arranhado não parava de dizer que estava muito nervosa (!), eu que estou irritada mas não nervosa lá lhe vou dizendo que não tem de porque estar assim, fizeram-se seguros ou passam-se cheques para isto mesmo. E só depois de o dizer três ou quatro vezes, a senhora e o filho lá percebem que não sou uma perigosa criminosa e começam a falar como pessoas ... normais. E lá vão dizendo que foram informados também por uma missiva, deixada no carro deles. Ao ler a missiva, passo de irritada a estarrecida.
Houve alguém, naquele centro comercial, que reparou que eu tinha dado um toque noutro carro, que me seguiu até ao segundo lugar escolhido para estacionar, que esperou que eu saísse do carro e então sim foi deixar recadinhos em ambos os carros, da vítima e da criminosa, naturalmente em tons adequados a cada interlocutor. A missiva para a vítima dava conta da campanha vitoriosa em perseguição da bandida (citando: bateram no seu carro e fugiram, mas eu segui-os e tirei-lhes a matrícula). A missiva para mim, a criminosa, denunciava-me: 'eu vi e vou informar a viatura onde a senhora bateu' (entre outras pérolas de português).
Factos.
1 - Não dei conta do arranhão.
2 - 'Fugi' para duas filas à frente.
3 - Entrei num centro comercial e fiquei mais de 3 horas 'foragida' entre lojas e cafés.
4 - Regressei ao local do crime.
5 - Não hesitei em ligar à vítima (bem apanhada, hem!)
6 - O justiceiro naturalmente não nos confrontou porque somos duas perigosas mulheres de 1,60 com ar ameaçador e armadas até aos dentes.
Tratámos das formalidades e, findo esse tempo, o rapaz já dizia: 'a sua amiga tem razão, a pessoa ainda se foi embora achando que tinha feito a boa acção do dia'.
Em tempos de crise acontecem coisas estranhas. Uma delas é exacerbarmos o que temos de bom, de excelente, de extraordinário. Massagens à auto-estima. Os portugueses, que povo extraordinário.
Em tempos de crise devíamos aproveitar e fazer uma revisão da matéria dada. Nomeadamente aquele capítulo sobre Portugal em que olhamos de frente para o facto de pessoas grandes, excelentes, extraordinárias habitarem o mesmo país que pessoas mesquinhas, cobardes, invejosas e tantas vezes estarem em minoria. E como esses terríveis defeitos já se impuseram tantas vezes na nossa história, nos fizeram atravessar silenciosamente 50 anos de ditadura (entre outras coisas) e persistem como traços de identidade em muitos de nós. Também eles portugueses.
É óbvio que todas estas características fazem parte do vastíssimo leque inerente à natureza humana. Mas os povos são mais assim ou mais assado, chama-se a isso identidade, tem razões culturais, sociais, antropológicas, entre outras e está estudado. Já o escrevi várias vezes e vou repetir: para sermos grandes e inteiros como dizia o poeta temos de vencer a mesquinhez que nos acompanha há gerações. É um trabalho para outras tantas gerações, resolve-se em casa, na escola, nas empresas, na vida em comum. E temos de tratar disso.
Isto ... isto é uma cena simplesmente genial que ontem tiveram a generosidade de me mostrar.
E isto é?
Isto é um gerador de nomes de profissões. Bom, não exactamente de profissões. Um gerador de nomenclaturas que impressionam. Cargos de pessoas que fazem ... cenas.
Querem ver?
1ª tentativa
Associate Front End Design God
Começamos por cima, Deus, ele próprio.
2ª tentativa
Black Belt GUI Guru
3ª tentativa
Junior User Interface Ninja
4ª tentativa
Senior Interaction Researcher
5ª tentativa
Middleweight IxD Evangelist
... terminando em (porque tenho de ir almoçar)
Chief Human Factors Manager
Digam lá que não têm aqui uma ficha técnica toda catita para começar a vossa muito catita startup?
Se são ainda mais esquisitos, do it yourself: http://aaronweyenberg.com/uxgenerator/
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.