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Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
A arte imita a vida, a vida imita a arte, and this goes on, and on, and on.
Em certos dias, estas evidências esfregam-se nos nossos olhos, zangam-nos com o mundo, com os outros, connosco e lá ficam em suspenso para nos reconciliarem. No minuto seguinte, na hora seguinte, no depois seguinte.
Ter uma série de culto é uma espécie de mania. Já é assim há muitos anos e o facto de hoje poder ver qualquer série a qualquer hora, vários episódios seguidos até à insanidade, não mudou em nada esta mania. Gosto de ver um episódio de cada vez da série que, a cada tempo, escolho para ser a versão TV do livro de cabeceira. Gosto de saborear um episódio de cada vez e de ficar a pensar no episódio do dia seguinte. Já fui fã das séries de culto que realmente fica bem dizer que somos fãs em público e já me deliciei dia após dia com verdadeiras soap às quais os connaisseurs torciam o nariz. Nunca me incomodou. É uma mania, um vício, um ritual, o que lhe queiram chamar. E da mesma forma que ninguém deixa de ser nosso amigo porque temos uns quilos a mais, uma borbulha nojenta na testa ou um casaco de gosto duvidoso, as séries já estão nesse saco de idiossincrasias.
Tudo isto para chegar aqui ao ponto onde hoje queria mesmo chegar. A minha série do momento chama-se The Good Wife e vai na quinta temporada. Comecei lançadíssima na primeira, vi até meio da segunda, interrompi na terceira, retomei na quarta e estou imparável desde então. É uma série sobre pessoas que vivem acima das minhas possibilidades, advogados e políticos na sua maioria. É uma série de 'ricos' cuja acção tem como palco central um escritório de advogados cuja quota de entrada como sócio é de 600 mil dólares. Mas é também uma série sobre mães e filhos, mulheres, mães e sogras, jovens aspirantes na máquina da justiça, alguns bandidos oficiais e alguns bandidos não assumidos. E é uma série que entra muito bem no território das empresas, nomeadamente de startups, e que explora de forma natural e não exibicionista a forma natural e não exibicionista como a tecnologia entrou na vida de todos nós. Do mais básico das redes sociais aos temas de espionagem da NSA (retratados da forma mais naturalmente coloquial).
Gosto de todas as derivadas, da política, da justiça, das disputas de negócios, das causas improváveis sobre direitos e deveres. Gosto da paixão e da tensão que marca cada episódio. Gosto do facto de estarem dois adolescentes no meio da história. Gosto especialmente da forma como a série entra pelas empresas dentro, desde a empresa-escritório de advogados que serve de âncora à história, a tantas outras que se vão cruzando de episódio em episódio. Em The Good Wife as empresas são vistas pela lente única das pessoas que as protagonizam, que lhes dão corpo. O chefe, o estagiário, o sócio, a secretária, o financiador. E as empresas são esse puzzle complicado constituído por pessoas muito diferentes, com expectativas diferentes, passados diferentes que se encontram num mesmo momento presente. É assim ali e é assim cá fora, quando me levanto do sofá e volto à vidinha.
Acredito que foi por isso que os episódios dos últimos dias me provocaram uma sentimento tão real. Indignei-me - a sério, argumentei - a sério, disse 'toma' mental - a sério (e outras coisas).
Nestes dias, o tema de The Good Wife foi desapontamento, traição e deslealdade. A personagem central - a Good Wife - sai da firma em que recuperou a sua carreira profissional e de que se tornou sócia, em ambiente de conspiração com os sócios e colegas com quem trabalhou durante anos. Conspiração significa roubo de informação, aliciamento de clientes, jogo duplo. Sem se trair, sem quase se melindrar.
Os 'conspiradores' sentem-se menosprezados, usados e não reconhecidos, e por acreditarem no seu talento querem a sua própria ribalta. Tudo plausível e legítimo.E, no entanto, tudo desprezível. Porque não há grande causa que se compadeça com uma forma de agir miserável. E quando ao vingarmos o erro de alguém nivelamos abaixo desse erro, é mesmo uma causa perdida.
Voltando à vida real. De pessoas que trabalham umas com as outras, às vezes são chefes, às vezes são patrões, na maioria dos casos são índios e empregados. Todos nós passamos por estes status e estados de alma. Trabalhamos que nem uns cães e alguém se esqueceu de um obrigado. Fazemos melhor que outros mas temos menos habilidade política, menos trânsito social ou na suprema das injustiças menos apelidos para quem tem esse critério como referência. Já todos passámos por isso. Começa logo cedo na escola e continua vida fora. Já fomos injustiçados, preteridos, obliterados, simplesmente esquecidos. E não somos nem santos nem mártires, somos pessoas normais que ficam lixadas como as pessoas normais ficam quando as coisas não correm bem.
Mas há momentos, alguns momentos muito bem definidos na linha do tempo, em que somos como que sorteados por uma ordem qualquer e temos de tomar uma posição, decidir um caminho, assumir o que somos lá no fundinho.
E nesses momentos não somos todos iguais. Uns tornam-se tão insuportáveis como os conspiradores da série, outros são igualmente insuportáveis mas podemos nunca saber (o que é pior) e outros ... outros são mesmo pessoas normais, pessoas-pessoas. Que se debatem, que têm ataques de fúria, de depressão, de ansiedade, mas que quando são colocadas na ponta da faca conseguem não se esquecer do que é isso de fazer as coisas bem.
Não se armar em fortalhaço quando se está em grupo ou em humilde quando se está a solo, é fazer as coisas bem. Discordar ou dizer coisas menos simpáticas directamente aos visados é fazer as coisas bem. Não manipular pessoas que gostam de nós e que confiam em nós é fazer as coisas bem. Não tomar como 'bom' apenas aquilo que é igual a nós é fazer as coisas bem. E há dezenas, centenas de outras variáveis que não vêm nem nos manuais de gestão, nem noutros manuais académicos, nem na catequese, nem nos códigos de ética. São straight from de heart. Aprendem-se connosco, aprendem-se em casa, aprendem-se vivendo uns com os outros.
Hoje uma pessoa que trabalha comigo há dois anos assumiu novas funções. Vai ter uma equipa para gerir, objectivos para alcançar, expectativas de todos para nivelar. Na conversa de preparação para as novas funções, depois de discutidos os detalhes operacionais, disse-lhe que aquilo em que devia colocar mais esforço era em conhecer as pessoas, em perceber quem são, mais do que aquilo que fazem. Conhecer as pessoas e perceber se a lealdade está lá, se a honestidade está lá, se a humanidade está lá. Porque se não estiver, tudo o resto pode valer muito pouco.
Já tive pessoas que trabalham comigo a sofrer por estarem há mais de uma tarde sem me dizer que se vão embora porque tiveram uma proposta de trabalho. E já tive pessoas que à minha frente juram uma dedicação ímpar, e ainda as sílabas não fizeram a digestão e já são cozinhadas para um propósito inverso.
A vida é muito melhor quando temos as pessoas boas por perto. É tão banal isto quanto ver séries no sofá e falar de personagens como se fossem 'pessoas a sério' mas se não fossem as coisas banais, a vida era seriamente insuportável.
Até breve, sejam leais e protejam os vossos ficheiros com passwords : )
P.S. - Não disse ainda mas o episódio que deu origem a esta conversa toda é simplesmente fenomenal!
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