Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
Estou a ler um livro que já fez correr muita tinta. Foi publicado a 7 de janeiro de 2015, o dia do massacre na redacção do jornal satírico francês Charlie Hebdo. Chama-se 'Submissão' e era a caricatura do seu autor, Michel Houellebecq, que estava na capa da edição dessa semana do Charlie.
Não era minha intenção escrever hoje sobre o livro - até porque ainda não acabei de o ler. Mas foi incontornável escrever sobre o livro quando inadvertidamente assisti durante o jantar desta noite a um programa de televisão em canal aberto - logo acessível a todos os que têm um aparelho de televisão.
Vamos por partes. Submissão é um romance que se passa em França, em 2020. Personagens reais como François Hollande, Manuel Valls e Marine Le Pen fazem parte de um cenário de ficção (?) em que, mediante o fracasso dos partidos do centrão francês (socialistas e UMP), as eleições presidenciais se travam entre a Frente Nacional e o Partido da Fraternidade Muçulmana. A extrema direita versus, como alguém já escreveu, uma espécie de islamismo porreiro.
Em 'Submissão', os socialistas acabam por se aliar ao novo partido muçulmano para derrotar a extrema-direita de Le Pen. No pacto de regime que estabelecem, o Partido da Fraternidade Muçulmana imaginado por Houellebecq entrega de mão beijada aos socialistas os ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros. Uma espécie de síntese da história do poder - o poder de fazer a guerra e o poder do dinheiro. As jóias da coroa de qualquer de qualquer soberania. No livro, o Partido da Fraternidade Muçulmana não quer estes poderes - e apenas exige um outro, como contrapartida, o Ministério da Educação. E é nesse território que se propõe mudar a França, desde logo começando por uma revisão da matéria dada sobre o papel da mulher na sociedade.
Um dia destes voltarei a este livro, mas este texto é sobre televisão, media, cultura, civilização, progresso. E sobre educação.
O pacto imaginado por Houellebecq é uma ideia genial. Tão mais genial por ser tão obscenamente ignorada na nossa civilizada civilização de todos os dias. Esqueçam o Islão, esqueçam as religiões, esqueçam a disputa norte-sul. Vejam só as coisas por este ângulo: estamos todos tão preocupados a discutir dinheiro, bancos, dívidas, estamos tão obcecados com dinheiro e com viver pelo e para o dinheiro que estamos mesmo a jeito para sermos implodidos. Porque é de facto a educação que nos molda, que nos transforma, que nos leva a ser o que somos. E porque não há maior poder do que esse.
E é agora que chego às televisões, aos media e às audiências.
Estive em viagem e parei por acaso num restaurante no meio de Portugal. Escolhemos o nosso lugar numa sala não muito grande, mas com dois televisores gigantes em cada extremo (foi pensado para servir o cliente, mas transforma-se rapidamente na constatação de que não se pode fugir à imagem da tv). E, sem opção, lá jantámos ao som estridente de um programa que é factualmente um sucesso. Tem apresentadores de televisão famosos, tem actores de telenovelas famosos, tem um júri igualmente famoso (e que fala de um espectáculo de tv com a solenidade de quem está a ditar prognósticos para os destinos do mundo). Tem publicidade metida a torto e a direito, nos cenários, nos rodapés de ´ligue já para o 760´, nos apresentadores famosos que saltam do palco principal para um cantinho onde dizem maravilhas sobre o produto que está na banquinha ao lado (tipo demonstradores de corredor de supermercado). Tem cenas imperdíveis de bastidores onde as pessoas concorrem entre si na hipérbole do postiço - riem muito, fazem gestos estranhos, têm súbitas vontades de se abraçar e beijar. As imagens da assistência no estúdio mostram pessoas ora num estado de excitação ora num estado de contemplação pelo momento bonito a que estão a assistir.
É um freak show. Tudo é ruído, tudo é uma caricatura e como caricatura um exagero que tende para o desfigurado.
É, não preciso fazer de conta que não sei, um programa líder de audiências. Como outros idênticos.
O que é que isto tem a ver com educação? Tudo.
Não tenho a presunção de acreditar que os bons programas são apenas os programas bons. Cultos, sérios, pedagógicos. A televisão é - também - espectáculo e o espectáculo é fundamental nas nossas vidas. Precisamos de rir, de sonhar, de nos evadir. E há gente muito capaz, talentosa e disponível para o fazer.
Dizem que o bom espectáculo - como a boa informação - não chega. Não faz número. Não vende patrocínio.
Os mesmos que dizem isto - e que são, em regra, quem opta pelos modelos cada vez mais de caricatura - mostram-se também eles ora pesarosos (ninguém gosta de ver estas feiras de vaidades ou esta exploração de natureza humana ou esta absoluta patetice, afirmam em círculos privados) ora cínicos (é isto que a malta quer e não venham com histórias porque toda a gente vê). Pesarosos ou cínicos, demarcam-se dos seus fregueses, a audiência que adere aos programas e que de uma forma ou de outra afirmam desprezar. Porque eles, naturalmente, não são assim! Só fazem estes programas porque tem de ser. Porque é preciso facturar e porque devemos dar às pessoas aquilo que elas querem.
O que é que isto tem a ver com educação? Tudo.
Os media vistos como um negócio como qualquer outro é tão perigoso como os museus, a música, o cinema ser visto como um negócio como qualquer outro. E sendo eu furiosamente contra uma cultura de subsídio-porque-sim-porque-somos-intelectuais-e-diferentes, consigo preferi-la a esta não-cultura de que nada se faz se não der dinheiro e tudo se faz para ganhar qualquer dinheiro.
Vai custar muito caro. E, pode ser, irremediável e irrecuperável.
Precisamos de pessoas cultas, responsáveis, comprometidas com um sentido de progresso e de civilização. Precisamos que estas pessoas estejam envolvidas nos processos de decisão do que vemos em televisão.
Precisamos que os anunciantes sejam também essas pessoas - não precisam deixar de vender detergentes, arroz, telemóveis ou carros. Mas podem vendê-los sendo parte de algo melhor e não explorando o que a natureza humana tem de menos bom e o que um país pobre tem demasia, ignorância e vertigem da fama.
Ou então podemos não fazer nada.
O tempo fará alguma coisa. Seja mostrar-nos um dia, tavez da pior maneira, que a educação conta. Seja já no tempo mais curto, em outubro deste ano, com a opção para muitos de ter uma oferta de uns tipos que ninguém conhecia e de que agora todos falam.
Não resisto a terminar com um excerto do 'Submissão' sobre as coisas que não servem para nada.
"Como se sabe, os cursos universitários da área de Letras não conduzem a praticamente nada, excepto, para os estudantes mais dotados, a uma carreira de professor universitário na área de Letras - em suma, a situação bastante bizarra de um sistema sem outro objectivo senão reproduzir-se a si próprio, tudo acompanhado por uma taxa de insucesso superior a 95%. Porém, trata-se de estudantes não nocivos que podem até apresentar uma utilidade secundária. Uma jovem candidata ao emprego de vendedora nas lojas Céline ou Hermès deverá, naturalmente,e em primeiro lugar, cuidar da sua apresentação; mas uma licenciatura ou uma pós-graduação em Letras Modernas poderá constituir um trunfo complementar e, à falta de competências úteis, garantir ao empregador uma certa agilidade intelectual, abrindo a possibilidade de evolução na carreira - tendo a literatura, além disso, uma conotação positiva na área da indústria de luxo".
Cartoon: Larry Wright - The Detroit News
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.