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Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
Nunca tinha ido a uma aula de ioga.
Vi filmes sobre ioga, participei em conversas, mais ou menos sérias, sobre ioga, ouvi amigas e amigos descreverem as suas experiências no ioga.
Mas nunca tinha ido a uma aula de ioga e, tão pouco, sentido alguma espécie de curiosidade sobre o ioga.
E é talvez por isso que dou comigo a escrever sobre um tema e uma experiência que dificilmente estaria na lista das coisas sobre as quais escrevo.
Mas hoje aconteceram uma série de coincidências e toda a minha racionalidade não foi suficiente para não ceder à possibilidade de ser um daqueles dias em que o universo fala connosco. Mal não fará, ter um dia destes de vez em quando, certo?
Começando pelo princípio. Hoje fui à minha primeira aula de ioga. Chego 10 minutos antes, informo que venho 'experimentar' uma aula e ouço apenas um despachado 'então descalce-se'. Então descalço-me, arrumo os pertences num cacifo e entro na sala onde vai decorrer a aula. O professor - mestre? não faço ideia das nomenclaturas - toca-me no ombro, pergunta baixinho se é a primeira vez, entrega-me uma manta e uma almofada e encaminha-me para um dos tapetes. Já há pessoas deitadas, tapadas, de olhos fechados, há outras a chegar. Só há sussurros, não há barulho, tudo acontece cordatamente como se uma ordem pré-instalada fosse do conhecimento geral, mesmo daqueles, como eu, que ali estão pela primeira vez (percebo que há mais dois).
Durante a hora e meia que se seguiu, aconteceu tudo o que, de alguma forma, sabia que ia acontecer. Pessoas deitadas de olhos fechados e palmas da mão viradas para cima, pessoas de pernas cruzadas, polegar tocando o indicador e soprando o Ooooommmmmm. Pessoas em posições inusitadas, estranhas, disparatadas. Agora um peixe, agora um gafanhoto, agora um conjunto de nomes impronunciáveis ou simplesmente impossíveis de reproduzir por uma recém-chegada sem pergaminhos. Inspirar e expirar. O aqui e o agora. Sorrir com o rosto, sorrir com o coração, sorrir com os dedos dos pés. Isso.
Saio de lá, regresso a pé a casa e venho pelo caminho a pensar no que me levou até ali.
Recordo ter dito várias vezes a várias pessoas que tinha curiosidade em 'sentir' o meu corpo, em adquirir uma outra flexibilidade, uma outra integralidade (existe a expressão? da condição de ser completo, inteiro). Recordo algumas recomendações, as mais e as menos 'grounded', as boas e más energias, o ioga 'ortopédico' é capaz de ser o melhor para ti ou o ioga 'ortopédico' é capaz de ser o mais frustrante para ti. Não pude não reparar na extraordinária delicadeza das pessoas a quem pedi que me falassem de ioga. Ninguém foi taxativo, absoluto, imperativo. Ninguém quis 'vender' o seu ioga. Uma gentileza mesmo das pessoas a quem conheço as mais profundas convicções noutras matérias.
E eu que sou uma espécie de 'calhau com olhos ', usando uma expressão tão-apropriada que ouvi recentemente, no que respeita a revelações, ensinamentos de mestres instantâneos, verdades supremas prontas a serem consumidas, fiz uma espécie de turismo de ioga, entre os trip-advisors conhecidos e online, ficando à minha total responsabilidade a escolha.
É por isso que estou grata. O meu baptismo de ioga foi exactamente o que devia de ser. Não foi perfeito, é fácil de perceber que não podia ser. Não faço ideia de quantos músculos, vértebras ou chakras foram remexidos durante uma hora e meia. Mas faço perfeita ideia - até pela ressaca posterior - que não fazia ideia, senão teria sido menos voluntariosa. E não fui menos voluntariosa porque queremos sempre ser tudo, fazer tudo. E no que não doeu ou não foi uma impossibilidade física, eu lá fui puxando, dobrando, sustendo. Respiro rápido demais. Estou demasiado atenta aos movimentos em volta. Tropeço (literalmente) no meu equilíbrio.O ioga de que fui à procura devia confrontar-me com estas evidências e, em consequência, ajudar-me com elas. E foi isso que trouxe de lá. Se por lá continuar, talvez a flexibilidade e a integralidade vão domando o voluntarismo e a sofreguidão do fazer.
O relato podia acabar aqui e estou certa que ficava mais bem vista. Mas não tenho como não escrever mais duas ou três coisas. Como o facto de toda a energia da manhã ter se transformado à tarde numa enorme necessidade de dormir. Como depois de breves minutos de sono incrivelmente profundo, acordo porque alguém ao meu lado ligou a televisão onde começa o filme 'Comer, orar e amar'. O filme feito a partir do livro que foi uma das prendas do meu 40º aniversário. O livro que gostei e um filme que, na estreia, nem por isso gostei. E que hoje revi e que hoje me fez ter vontade de só ser um estereótipo palerma dos que dão jeito na literatura e no cinema e ir por aí mundo fora, entre pizzas, meditação e o amor da nossa vida. Gosto daquele Deus, que sorri, que somos nós. Na realidade, acho que é esse o único Deus, chamemos o que chamarmos, procuremos onde quer que seja. Mais aquela vontade de sair, de não ser refém do que tem de ser, de me dispor a descobrir por mim onde devo estar, onde quero estar. Liberdade, inspiração, expiração.
Vejo o filme até ao fim. Vou ao quarto da minha filha saber como vai o estudo da matemática, digo-lhe que é bonita, ela responde-me com ironia adolescente e quando acabei de completar mais um momento 'estranho' do dia, ela diz-me: 'queres ver o que aprendi a tocar?'. Pega na viola, articula os dedos e o que ouço é isto:
Há dias em que o universo fala connosco. Mal não fará, ter um dia destes de vez em quando, certo?
Até breve
Nota to self e aos demais: este deve ter sido o post que mais tempo ficou aberto sem saber se o destino era rascunho ou publicação. Não é o meu território natural, ou, de certa forma, até é.
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