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Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
Mas continuas lá?
Continuo, mas aquilo é terrível,. Não sei quanto tempo mais vou ter de ficar. Até ver. Tenho de fazer a tese e ainda estou no princípio. E tu, voltaste de vez?
Não sei. Mas por lá as coisas não estão melhores. É uma economia doente, tudo para dar certo, mas a dar errado. Vou acabar o mestrado cá e depois logo se vê.
Tenho de me dedicar agora à tese. As aulas são boas, temos bons professores. Mas preciso de ler e de trabalhar no meu tema.
E a Ana? Ainda está no banco?
Não, ela saiu, voltou para a terra dela. É difícil lá, não há quase nada para fazer, mas ela não aguentava mais.
Ela estava na área de XPTO, não era?
Estava e no pior departamento. Toda a gente odeia. Ela não aguentou. Tenho tantas saudades dela.
O único nome que escrevo, Ana, foi alterado. A ‘terra dela’ é na realidade uma cidade portuguesa do interior e o banco a que se referem os dois protagonistas deste diálogo tem uma identidade conhecida da generalidade das pessoas e aqui omitida.
A conversa que reproduzo aconteceu hoje nos minutos que antecederam a conferência de Thomas Piketty na Fundação Gulbenkian. Não tenho rostos para relembrar, apenas vozes, uma portuguesa e uma brasileira já quase sem sotaque, imediatamente atrás de mim.
Teve lugar num dos auditórios que se encheram depois do principal estar a abarrotar. O capitalismo é mesmo um tema sexy, qual série do momento que todos suspiram por conhecer os desenvolvimentos mais do que o desfecho.
Piketty chegou a Lisboa, como provavelmente a outras paragens, como uma espécie de mega-produtor da série líder de audiências. Um Fincher da economia.
E os fãs não se fizeram rogados. Como em qualquer fenómeno da moda, estavam lá os verdadeiros fãs, que não perdem um episódio, nem sequela, nem tão pouco o gossip de bastidores. E estavam os outros. Os interessados por conveniência que compareceram a um evento que facilmente irá render assunto nos próximos almoços e eventos de negócios. Ou ainda outros interessados de conveniência que viram aqui uma forma mais eficiente e eficaz – não são esses os objectivos que orientam o capital do século XXI? - de ter em pouco mais de uma hora aquilo que demoraria dias, em boa produtividade, se fossem ler as 600 páginas de O Capital do Século XXI.
Estavam novos e mais velhos. Habitantes de sempre do espaço Gulbenkian e novatos. Académicos e curiosos.
Estava a casa cheia.
Da conferência de cerca de hora e meia não retive nada de especial. Nada que não tivesse lido ao fim das páginas de introdução do livro. Não era uma conferência fácil – o argumento é apelativo mas a execução, como em tantas mega-produções, é difícil.
Piketty optou por desfilar a síntese possível. Procurou, qual bom performer, agradar à audiência. A dívida pública de Portugal ou da Grécia não é sequer, historicamente, a mais elevada, disse. A França e a Alemanha também não pagaram centavo a centavo as suas dívidas no pós Guerra. Por aí.
Disse também que era melhor a olhar para o passado do que a prever o futuro. A piada fácil é dizer ‘não somos todos, caro Piketty?”. Infelizmente não tem sequer piada. Porque não é verdade. Somos péssimos a ler a História, péssimos a aprender com a História. E o tempo que passa não nos melhora e isso aflige.
No meu lugar, lutei durante quase 90 minutos com as circunstâncias.
A circunstância técnica que me transportou para uma realização própria dos anos 80 e que quase comprometeu o arranque da conferência (comprometeu mesmo). Primeiro havia som, mas não havia imagem. Depois havia imagem e não havia som. O exaspero chegou ao ponto de haver pessoas no auditório a levantarem-se para ir bater no vidro do ‘aquário’ da régie.
Como na economia contemporânea, ouvi Pikkety sempre em opção binária. Não podemos ter tudo. Ou vemos o slide ou vemos o orador. E cada vez que muda o plano do slide para o orador ou vice-versa temos aquele ruído característico das colunas com cabos que já conheceram melhores dias. Um schhhhhhh a marcar o compasso da nossa economia desfavorecida que mesmo na maior e mais importante fundação do país se faz sentir.
Uma terceira circunstância tornou a missão ‘Piketty na Gulbenkian’ verdadeiramente penosa. À minha frente um casal acima dos 60, talvez acima dos 70, requisitou auscultadores para acompanhar a conferência com tradução em português. Ninguém lhes pode levar a mal. Afinal, era um francês a falar inglês. Também pode ser penoso. Mas o senhor e a senhora de cabelo grisalho fizeram mais que isso. Ele colocou os auscultadores em modo rádio – o que significa que quem estava à sua volta ouvia em simultâneo o francês a conferenciar em língua inglesa e o tradutor, mais uma vez em ambiente ‘schhhhhh’ de electrónica roufenha, a debitar em português. Ela, que tinha os auscultadores bem colocados – leia-se nas orelhas – interrompia quando lhe aprouvia naquele registo que algumas pessoas têm no cinema. “E agora, o que é que aconteceu” – isto sobre o capital do século XXI. Ao que o companheiro respondia em decibel também generoso e impassível ao exaspero alheio.
No fim da sessão, uma rapariga de 20 anos que conheço de outras vidas e que também foi ouvir Piketty, debatendo-se nas mesmas dificuldades, dizia-me: ‘e os velhotes, Rute, coitados!’. Coitados não. Egoístas. Eles viram a sua conferência. Eu e outros não. A idade não é nem pode ser passaporte para a condescendência.
Saí de lá a pensar que o que de mais importante aconteceu não foi o que se passou em palco – previsível e a saber a pouco para quem conhece o trabalho e/ou leu o livro. O mais importante esteve na audiência. Do frisson de ‘acontecimento social’ que levou muitos dos nossos top ten de rendimento à Gulbenkian para ouvir falar da bomba-relógio que são as desigualdades, até ao espelho da economia e sociedade que este capitalismo pop-star está a gerar. Jovens frustrados, que odeiam o que fazem, que procuram um sentido para o que fazem, que tantas vezes abdicam de tudo fazer. Empresas com negócios que as pessoas odeiam – dentro e fora da empresa.
Velhos egoístas, herdeiros de um mundo que já não existe, mas determinados a usufruir dele como da aparelhagem roufenha que compraram há 30 anos. Quando eram novos e lhes prometeram que tudo seria sempre mais e melhor.
Infelizmente para todos nós, o inverso também é verdade. Também temos os jovens egoístas e os velhos frustrados.
Uns e outros, tudo isto, é produto do capital do século XXI e não é uma história bonita.
P.S. – Uma última nota sobre a conferência. Além das questões técnicas, também já era tempo de conferências com temas naturalmente passíveis de debate e comentário, como era o caso, terem outra interacção que não apenas o microfone para dar a palavra no fim da sessão. O twitter, por exemplo, é perfeito para ligar todos dentro e fora da sala, em torno de um tema. Não é sequer inovação, é só rotina em qualquer grande conferência e evento e apenas uma das muitas possibilidades.
P.S. 2 - E já que estamos em modo conferências/capitalismo, vale muito a pena a leitura deste artigo publicado no Público de domingo, dia 26 de Abril. É de outro Tomás, este checo, e tem o apelativo título de "Não estamos aqui para viver vidas úteis, mas vidas belas".
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