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X-Acto

Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos



Segunda-feira, 27.04.15

Jovens frustrados e velhos egoístas. Ou vice-versa. Bem vindos à economia do século XXI.

 

piketty

 

Mas continuas lá?

 

Continuo, mas aquilo é terrível,. Não sei quanto tempo mais vou ter de ficar. Até ver. Tenho de fazer a tese e ainda estou no princípio. E tu, voltaste de vez?

 

Não sei. Mas por lá as coisas não estão melhores. É uma economia doente, tudo para dar certo, mas a dar errado. Vou acabar o mestrado cá e depois logo se vê.

 

Tenho de me dedicar agora à tese. As aulas são boas, temos bons professores. Mas preciso de ler e de trabalhar no meu tema.

 

E a Ana? Ainda está no banco?

 

Não, ela saiu, voltou para a terra dela. É difícil lá, não há quase nada para fazer, mas ela não aguentava mais.

 

Ela estava na área de XPTO, não era?

 

Estava e no pior departamento. Toda a gente odeia. Ela não aguentou. Tenho tantas saudades dela.

 

 

O único nome que escrevo, Ana, foi alterado. A ‘terra dela’ é na realidade uma cidade portuguesa do interior e o banco a que se referem os dois protagonistas deste diálogo tem uma identidade conhecida da generalidade das pessoas e aqui omitida.

A conversa que reproduzo aconteceu hoje nos minutos que antecederam a conferência de Thomas Piketty na Fundação Gulbenkian. Não tenho rostos para relembrar, apenas vozes, uma portuguesa e uma brasileira já quase sem sotaque, imediatamente atrás de mim.

Teve lugar num dos auditórios que se encheram depois do principal estar a abarrotar. O capitalismo é mesmo um tema sexy, qual série do momento que todos suspiram por conhecer os desenvolvimentos mais do que o desfecho.

Piketty chegou a Lisboa, como provavelmente a outras paragens, como uma espécie de mega-produtor da série líder de audiências. Um Fincher da economia.

 

E os fãs não se fizeram rogados. Como em qualquer fenómeno da moda, estavam lá os verdadeiros fãs, que não perdem um episódio, nem sequela, nem tão pouco o gossip de bastidores. E estavam os outros. Os interessados por conveniência que compareceram a um evento que facilmente irá render assunto nos próximos almoços e eventos de negócios. Ou ainda outros interessados de conveniência que viram aqui uma forma mais eficiente e eficaz – não são esses os objectivos que orientam o capital do século XXI? - de ter em pouco mais de uma hora aquilo que demoraria dias, em boa produtividade, se fossem ler as 600 páginas de O Capital do Século XXI.

Estavam novos e mais velhos. Habitantes de sempre do espaço Gulbenkian e novatos. Académicos e curiosos.

Estava a casa cheia.

 

Da conferência de cerca de hora e meia não retive nada de especial. Nada que não tivesse lido ao fim das páginas de introdução do livro. Não era uma conferência fácil – o argumento é apelativo mas a execução, como em tantas mega-produções, é difícil. 

Piketty optou por desfilar a síntese possível. Procurou, qual bom performer, agradar à audiência. A dívida pública de Portugal ou da Grécia não é sequer, historicamente, a mais elevada, disse. A França e a Alemanha também não pagaram centavo a centavo as suas dívidas no pós Guerra. Por aí.

Disse também que era melhor a olhar para o passado do que a prever o futuro. A piada fácil é dizer ‘não somos todos, caro Piketty?”. Infelizmente não tem sequer piada. Porque não é verdade. Somos péssimos a ler a História, péssimos a aprender com a História. E o tempo que passa não nos melhora e isso aflige.

 

No meu lugar, lutei durante quase 90 minutos com as circunstâncias.

A circunstância técnica que me transportou para uma realização própria dos anos 80 e que quase comprometeu o arranque da conferência (comprometeu mesmo). Primeiro havia som, mas não havia imagem. Depois havia imagem e não havia som. O exaspero chegou ao ponto de haver pessoas no auditório a levantarem-se para ir bater no vidro do ‘aquário’ da régie.

Como na economia contemporânea, ouvi Pikkety sempre em opção binária. Não podemos ter tudo. Ou vemos o slide ou vemos o orador. E cada vez que muda o plano do slide para o orador ou vice-versa temos aquele ruído característico das colunas com cabos que já conheceram melhores dias. Um schhhhhhh a marcar o compasso da nossa economia desfavorecida que mesmo na maior e mais importante fundação do país se faz sentir.

Uma terceira circunstância tornou a missão ‘Piketty na Gulbenkian’ verdadeiramente penosa. À minha frente um casal acima dos 60, talvez acima dos 70, requisitou auscultadores para acompanhar a conferência com tradução em português. Ninguém lhes pode levar a mal. Afinal, era um francês a falar inglês. Também pode ser penoso. Mas o senhor e a senhora de cabelo grisalho fizeram mais que isso. Ele colocou os auscultadores em modo rádio – o que significa que quem estava à sua volta ouvia em simultâneo o francês a conferenciar em língua inglesa e o tradutor, mais uma vez em ambiente ‘schhhhhh’ de electrónica roufenha, a debitar em português. Ela, que tinha os auscultadores bem colocados – leia-se nas orelhas – interrompia quando lhe aprouvia naquele registo que algumas pessoas têm no cinema. “E agora, o que é que aconteceu” – isto sobre o capital do século XXI. Ao que o companheiro respondia em decibel também generoso e impassível ao exaspero alheio.

No fim da sessão, uma rapariga de 20 anos que conheço de outras vidas e que também foi ouvir Piketty, debatendo-se nas mesmas dificuldades, dizia-me: ‘e os velhotes, Rute, coitados!’. Coitados não. Egoístas. Eles viram a sua conferência. Eu e outros não. A idade não é nem pode ser passaporte para a condescendência.

 

Saí de lá a pensar que o que de mais importante aconteceu não foi o que se passou em palco – previsível e a saber a pouco para quem conhece o trabalho e/ou leu o livro. O mais importante esteve na audiência. Do frisson de ‘acontecimento social’ que levou muitos dos nossos top ten de rendimento à Gulbenkian para ouvir falar da bomba-relógio que são as desigualdades, até ao espelho da economia e sociedade que este capitalismo pop-star está a gerar. Jovens frustrados, que odeiam o que fazem, que procuram um sentido para o que fazem, que tantas vezes abdicam de tudo fazer. Empresas com negócios que as pessoas odeiam – dentro e fora da empresa.

Velhos egoístas, herdeiros de um mundo que já não existe, mas determinados a usufruir dele como da aparelhagem roufenha que compraram há 30 anos. Quando eram novos e lhes prometeram que tudo seria sempre mais e melhor.

Infelizmente para todos nós, o inverso também é verdade. Também temos os jovens egoístas e os velhos frustrados.

Uns e outros, tudo isto, é produto do capital do século XXI e não é uma história bonita.

 

P.S. – Uma última nota sobre a conferência. Além das questões técnicas, também já era tempo de conferências com temas naturalmente passíveis de debate e comentário, como era o caso, terem outra interacção que não apenas o microfone para dar a palavra no fim da sessão. O twitter, por exemplo, é perfeito para ligar todos dentro e fora da sala, em torno de um tema. Não é sequer inovação, é só rotina em qualquer grande conferência e evento e apenas uma das muitas possibilidades.

 

 P.S. 2 - E já que estamos em modo conferências/capitalismo, vale muito a pena a leitura deste artigo publicado no Público de domingo, dia 26 de Abril. É de outro Tomás, este checo, e tem o apelativo título de "Não estamos aqui para viver vidas úteis, mas vidas belas".

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por sparks às 23:59


6 comentários

De Cecília a 28.04.2015 às 11:21

a ironia maior foi tal "espetáculo" ter ocorrido na Fundação Gulbenkian...
enfim! mais uma situação de cortar os pulsos. texto bom de ler. obrigada.

De sparks a 01.05.2015 às 12:12

Obrigada, Cecília. Tenho a certeza que a Fundação vai encontrar o seu caminho - tem sempre encontrado e foi durante anos o nosso Ministério da Cultura. Merece essa confiança, mesmo em momentos que as coisas correm menos bem : ) Até breve

De Ana a 28.04.2015 às 18:13

Parabéns pelo texto, tenho a certeza que, como eu, muitos jovens se revêem nele. Fiquei para aqui a pensar numa coisa..."somos péssimos a aprender com a História" - eu concordo e receio que jovens como nós, os jovens a que te referiste, um dia também se esqueçam do que vivemos hoje, que nessa altura já será História, e que voltem a repetir os mesmos erros, outra e outra vez...

De sparks a 01.05.2015 às 12:14

A História, que é o nosso presente, passa muito rápido. A História que é o nosso passado, se quiseres o nosso artquivo, está sempre lá, qual bisavó a contar-nos como foi. Só temos de ter disponibilidade - e vontade - de ouvir e tirar as nossas próprias conclusões para o presente. Obrigada pelo teu comentário e até breve

De amelia a 29.04.2015 às 08:51

Gostei deste seu texto. Na verdade, acho que a F Gulbenkian é hoje muito mais dos velhos, grupo no qual me insiro, do que dos novos. A Fundação deveria fazer um esforço para se modernizar e captar novos públicos, mas pelo que estou a ver as tecnologias deixam muito a desejar...
Agora convém ter presente que dificuldades sempre as houve....

De sparks a 01.05.2015 às 12:17

Olá Amelia. Eu cresci como adolescente nos anos 80 e a Fundação Gulbenkian ajudou-me a olhar o mundo. Hoje que estou nos 40s continuo a ir à Gulbenkian e os meus filhos vão lá desde bem pequenos. A Fundação é um espaço com espaço para todos - mas, sim, precisa de um sopro. Não é apenas a tecnologia, é o que a tecnologia nos permite fazer melhor. Obrigada pela visita e até breve

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