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Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
Uma nota prévia apenas para dar conta do estranho que é escrever sobre Estocolmo quando já me encontro em pleno areal do sotavento algarvio. Fica mais difícil regressar ao ambiente em que estava há uma semana, mas conto com a ajuda do carderno de notas para que seja o mais verosímil possível.
Estocolmo foi a última paragem de uma viagem que nos levou a quatro cidades: Praga, Berlim, Copenhaga e Estocolmo. A parte boa de preparar viagens é antecipar o prazer da descoberta, a parte menos boa é que esse exercício por vezes suga-nos a surpresa. Copenhaga foi a cidade menos planeada de todas as visitadas. Não estranhamente foi a que mais supreendeu. Berlim é, para mim, um caso à parte ( e sim, será a última cidade sobre a qual escreverei). Sobre Estocolmo sabíamos algumas coisas e uma das coisas que sabíamos chamava-se Gamla Stan. Gamla Stan era o nosso 'must go' na capital sueca, por recomendação entusiástica de amigos e porque o que fomos lendo nos dizia que sim, que tinha de ser. O que não podia contar é que fosse sentir uma diferença tão grande entre esta 'Cidade Velha' de Estocolmo e o resto da cidade.
Vamos por partes.
Chegámos a Estocolmo depois de uma viagem atribulada de comboio com paragens em várias estações e apeadeiros. Recebeu-nos uma estação central semi-deserta às 8 da noite, com quase todas as lojas fechadas (incluindo restaurantes) e com todos os postos de informação encerrados. Em teoria, tudo contrariava o proverbial serviço público irrepreensível dos nórdicos. A primeira refeição foi fast food. Uma fast food cara e de qualidade inferior às que até aí tínhamos experimentado (em cadeias globais como Burguer King e Pizza Hut). O mesmo Whooper que em Praga tinha custado menos 5 euros aqui custou quase 8 e sabia bem pior. Em contrapartida não há qualquer momento 'lost in translation'. Todos falam inglês fluente, com a naturalidade da língua materna. Não há postos de informação e percorremos a mesma gare duas vezes até entrarmos por mero acaso numa loja Seven Eleven para pedir ajuda. Na loja não só obtemos ajuda como ficamos a saber que ali se vendem os bilhetes de metro que precisamos para chegar ao nosso hotel. O metro de Estocolmo é uma obra de arte da engenharia. Estamos na plataforma 4 que é mesmo no fundo do fundinho. Descemos escadas a pique. Há lances de escadas rolantes parados. Na Suécia, os sistemas também falham e quando mais se precisa que funcionem, nomeadamente quando se carregam malas de viagem. Chega o nosso metro e vai cheio. Um grupo de vozes destaca-se pelos decíbeis primeiro (mesmo) e pela língua em que se expressam depois. Falam português, são de algum país africano, não conseguimos apurar qual e vêm ou vão para uma festa. Falam muito, riem muito, cantarolam, ocupam espaço.
Chegamo a Solna e estamos nuns arredores da capital simpáticos com um belo parque verde a emoldurar o bairro. Não encontramos o hotel, fiamo-nos no Google Maps, enganamo-nos com o Google Maps e num cruzamento fazemos sinal a um carro de polícia. Que pára prontamente, ouve-nos com atenção e a polícia (a senhora polícia, por sinal bem gira), que não sabe onde é o hotel, pergunta-nos se temos iphone. Iphone, isso. Temos e ela pesquisa no nosso mapa no iphone e indica-nos que temos de seguir o caminho inverso. Pede desculpa por ser só essa a ajuda que dá mas 'estão a entrar ao serviço'. Vislumbramos aqui, pela primeira vez, o tal serviço público sueco. Mais 500 metros de caminhada e não vislumbramos hotel. Taxis! Dirigimo-nos ao primeiro taxista e - há valores universais - não só sabe, como sai do carro para andar escassos 30 m e nos mostrar a entrada do hotel que é a mesma de um centro comercial, logo nunca daríamos por ela (e o Google mandava-nos dar uma volta a um quarteirão aparentemente inexistente).
O pequeno-almoço é servido a partir das 6 - começa-se cedo aqui. Nós descemos pelas 8 e meia, não sem antes ter adormecido e acordado com os céus de Estocolmo como tecto. Estamos no 10º piso do hotel, temos uma vista panorâmica extraordinária e nessa manhã o céu está azul como nos livros infantis. No elevador temos por companhia uma sueca de 50 e muitos anos que desce connosco ... descalça. Tudo normal. O pequeno almoço é como se quer. Uma verdadeira 'primeira' refeição no sentido mais puro de 'primeiro'. Aqui não há Nutella, um verdadeiro manjar matinal para os nossos adolescentes, que irão reclamar do facto. Mas o pão é o melhor de todas as cidades visitadas, os ovos mexidos são saborosos, há fruta variada e ... queijo! Muito queijo, bom queijo, o melhor dos queijos. Há também jantares completos como almondegas com batatas e legumes e há quem os coma.
Vamos para o centro, rumo a Gamla Stan, o tal bairro que não podemos perder. No metro temos mais um desafio: perceber qual o bilhete que melhor nos convém. Em Praga só andámos de eléctrico, em Berlim as opções eram 5 ou 6 e facilmente se descortinava a nossa (bilhete small group até 5 pessoas, dia inteiro), em Copenhaga a bicicleta e o autocarro 30 resolveram tudo e aqui ... bom aqui as opções não acabavam. Contei pelo menos 30 (há bilhetes por semestre escolar, por férias de semestre escolar, entre determinados horários e por aí fora) e acabou por ser melhor o velho método de perguntar ao senhor da bilheteira. Este senhor da bilheteira tem mais de 50 anos, fala um inglês correcto e investe todo o seu tempo e atenção em encontrar-nos a melhor solução. O mesmo acontecerá no dia em que vamos para o aeroporto. Consulta tabelas, faz contas, revê percursos, até nos dar a 'best offer'. Serviço público, está aqui.
O centro de Estocolmo naquele domingo estava particularmente animado. Há uma prova internacional de triatlo e as ruas estão devidamente sinalizadas, há voluntários em cada quarteirão e muita gente na rua para assistir, além de turistas. Gamla Stan é um piscar de olhos bem sucedido à primeira. O bairro parece saído de uma qualquer história clássica, nas paredes, no movimento, no retrato há um amarelo das estórias antigas que pinta tudo. A única loja não sueca que encontramos é precisamente a primeira onde paramos: The English Bookshop. E é exactamente como imaginamos uma english bookshop em jeito Notting Hill mas com uma rapariga loura e simpática em vez do Hugh Grant a atender. A rua principal - Västerlånggatan - corre sinuosa pelo bairro e cumpre-se com lojas de chocolate, casas vikings, lojas de adereços para a casa, lojas de objectos temáticos sobre animais, roupa, mas são todas - todas mesmo - suecas. Não há H&M, Zara, McDonalds. Nem Prada, Gucci ou Vuitton. Ah, e neste bairro, sobem-se ruas. Talvez o único espaço - à excepção do Castelo de Praga - onde o piso não é plano neste tour europeu. Numa das ruas de cima, fica a Catedral de Estocolmo onde assistimos durante a visita a um baptizado conduzido por uma mulher a quem as vestes clericais assentavam com elegância. Ao centro, Stortorget, a praça do Museu Nobel e também a praça do Banho de Sangue de Estocolmo, em 1520. Um ajuste de contas, uma traição, um dos muitos episódios de guerra entre suecos e dinamarqueses. Neste caso, os dinamarqueses liderados por Cristiano II cercaram a Gamla Stan, a cidade rendeu-se, o rei invasor mandou fazer um festim de dois dias e depois das pazes e da aministia aos vencidos levou à praça mais de cem apoiantes do rei da Suécia e executou-os. Em Stortorget.
Hoje é uma praça tranquila, naquele domingo apenas banhada por um sol intenso e duradouro.
Gamla Stan é também a sede do Palácio Real, coisa pequena para 600 quartos, onde todos os dias se assiste ao render da guarda. Eu não vi, mas os nossos adolescentes garantem que os guardas tocam uns acordes de Dancing Queen dos Abba algures durante a cerimónia. Eu não vi e fiquei verdadeiramente triste por não ter assistido. Imaginar os nossos guardas de Belém a tocar o Homem do Leme dos Xutos e Pontapés à porta de Cavaco Silva é qualquer coisa.
Quando saímos de Gamla Stan entramos em Estocolmo. Ou então ao contrário. Gamla Stan é Estocolmo e o resto é outra coisa. Outra coisa bonita, monumental, muito momumental, sóbria, imperial até. Esta cidade é um arquipélago, onde barcos levam turistas de canal em canal, onde aqui e ali há palácios imponentes que se erguem isolados num bocado de terra. Decerto há filmes do 007 gravados aqui. É uma paisagem de riqueza e de força sem nunca ser exibicionista. É só forte, muitas vezes impenetrável e essa percepção, de alguma forma, intimida e impede uma maior proximidade. Estocolmo não dá confiança a estranhos, não é Lisboa menina e moça, nem a Copenhaga que sorri. Nós estamos ali, naquele cenário, naquela ponte, naquele relvado, naquela fachada triunfal do Nordiska Museet, mas podíamos estar a vê-los num livro, num postal ou num filme porque não conseguimos ficar mais próximos por ali estar. E isto depois de termos sido absorvidos por Gamla Stan, tornados personagens daquela história. Ainda assim, foi num banco de jardim em Djurgårdsvägen que vimos o mais bonito por-de-sol das férias. Um por-de-sol perfeito sobre o canal com patos em fila a mudar de margem e barcos que se atravessam no horizonte. Como nos filmes.
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