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X-Acto

Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos


Domingo, 23.03.14

Pessoas que vivem como quem joga bilhar

Há cerca de duas semanas, e depois de tanto, mas tanto, buzz, comecei finalmente a ver House of Cards, a aclamada série produzida pelo Netflix. Hoje estou menos interessada em modelos de negócio e nos paradigmas da indústria e realmente muito interessada na história.

House of Cards é sobre a política na capital mais poderosa do mundo, Washington. House of Cards é sobre poder. House of Cards é sobre os limites do que é mau, imoral, indecente. House of Cards é, frequentemente, sobre o facto de que não há limites. House of Cards é sobre as vidas em determinados circuitos em que quanto pior, melhor.

 

Uma das experiências mais curiosas que esta série me está a trazer é o confronto entre a forma como eu a vejo e a forma como o meu filho de 17 anos a vê. O meu filho, cúmplice de muitas das minhas decisões profissionais (das mais importantes, diria), o meu filho que gosta de política e de economia, como eu, o meu filho que é das pessoas com melhor coração e cabeça que alguma vez conheci (sim, sou mãe dele. mas é).

O meu filho tem simpatia por Frank, ou Francis, Underwood. Sabe que o protagonista de House of Cards é um personagem terrível e temível, em alguns episódios diz mesmo que foi um 'fritanço', mas, no fim do dia, eu sei, torce por ele.

Isto só é possível porque, para o meu filho, contrariamente ao que se passa comigo, Francis Underwood nunca deixa de ser um personagem, uma ficção. Isso protege-o de outros pensamentos, de outras angústias. Como mãe, penso que ainda bem.

 

Eu não consigo ter essa liberdade. A de gostar desse personagem magnífico, interpretado pelo magnífico Kevin Spacey. Eu nunca deixo de ver a realidade além da ficção e, por isso, quase tão proporcional ao ritmo voraz com que estou a consumir a série, está a minha insatisfação no fim de cada episódio. Não é com a ficção ou com a qualidade da série. Não podia ser. A série está muito bem feita, Kevin Spacey e Robin Wright, mas não só, estão soberbos, as pontes com os temas da política internacional, da política, dos negócios, da vida das pessoas 'normais' no teatro da política e dos negócios, estão lá todos.

O meu problema é já ter conhecido, em carne e osso, outros Francis Underwood, bem como várias outras personagens do séquito que povoa House of Cards. O meu problema é saber que são reais e que, no mundo cá fora, das pessoas 'normais', continuamos a achar que são ficção, exagero, liberdade criativa. Ninguém é assim tão manipulador, pois não? Ninguém está disposto a sacrificar vidas em prol do seu corredor de poder, pois não? Ninguém mente com a convicção com que a nossa mãe diz que nos ama, pois não? Ninguém vive a jogar bilhar a todas as horas, construindo triangulações improváveis que a maior parte de nós nunca vislumbraria. Ninguém faz isso. Pois não?

 

Os circuitos de poder premeiam cada vez mais esse mérito dos homens e mulheres para quem os fins justificam todo e qualquer meio. São espertos, são rápidos, são agressivos, são ambiciosos e greed is good. Depois, por inerência, premeiam igualmente os que lhe são fiéis, os que capitulam mediante as devidas contrapartidas, os que acenam com ar entendido de quem percebe toda a jogada. E, por oposição, desdenham nos que desistem, nos que denunciam (invejosos, loosers ou outra espécie qualquer ...) e naqueles que simplesmente não aparecem (se nada fizeste, nada poderás dizer).

Curiosamente, estou a ler em paralelo um livro do Moisés Naim intitulado 'O fim do poder'. É um livro sobre a efemeridade do poder e ansiedade daqueles que o detém por serem hoje mais escrutinados que nunca e pelo seu tempo de mandar ser mais curto que nunca.

Não deixa de ter piada que o terror ao poder e o terror do poder convivam no mesmo tempo, o nosso tempo.

É por tudo isto que vou continuar a ver House of Cards e é por tudo isto que vou acabar cada episódio maldisposta. É uma espécie de masoquismo. Talvez me ajude, mesmo que não veja bem como, a aceitar aquilo que não posso mudar.Citando Frank Underwood, num dos momentos cruciais da série: 'One heartbeat away from the presidency and not a single vote cast in my name. Democracy is so overrated'. Talvez simplesmente todo o poder esteja sobrestimado. Ah, e claro, também continuarei a ver House of Cards por causa do Kevin Spacey e da Robin Wright. Definitivamente, eles não estão 'overrated'.

 

Até breve

 

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por sparks às 19:13


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