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X-Acto

Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos


Quarta-feira, 10.06.15

Quero ter saudades de Portugal.

A RTP exibiu esta manhã uma reportagem sobre os emigrantes. Vem a jeito do 10 de junho. Vem a propósito do Dia de Portugal. A reportagem está bem feita. Na preguiça da manhã que corre devagar deixei-me ficar com o comando na mão mas sem trocar de canal. Os emigrantes estão na Suíça. A vida ali é diferente, garantem. "Não podíamos levar aqui a vida que levávamos em Portugal". Qual vida? A vida de casa-trabalho e um bónus ao fim de semana com um passeio em família. "Ao centro comercial?", pergunta a jornalista. Sim, confirmam, ao centro comercial. Fico sem saber se essa era a 'boa vida' versus a vida dura no estrangeiro. Fico sem saber se é uma vida melhor ou pior, a que agora têm. Mas sei que não tencionam voltar - "Portugal só é bom para férias e mesmo assim não pode ser muito tempo". Ganham sete vezes mais na Suíça. Os filhos gostam da Suíça.

Outros emigrantes estão em Angola. Já pensaram voltar a Portugal, mas a troika fê-los desistir da ideia. Para os próximos quatro ou cinco anos também não querem ter ideias dessas. Angola dá-lhes 'a estabilidade que Portugal lhes tirou'. Angola dá-lhes estabilidade. Vivem bem. Têm emprego. A mulher da família descobriu uma oportunidade de negócio em Angola. O homem da família até gostava de abrir um negócio dele em Portugal - mas Portugal não está para isso.

Outros emigrantes voltaram. Um dos que vejo na reportagem foi para Inglaterra e voltou. É professor primário. Portugal continua na mesma, diz. Mas ele não estava disposto ao esforço que Inglaterra lhe exigia numa escola em que se falavam 32 línguas.

A reportagem fala ainda dos portugueses felizes. Um dos investigadores chefes da Fundação Champalimaud. Ou outro chef, o Kiko Martins, que já correu mundo - porque quis, não porque precisou. São portugueses felizes porque podem escolher. Poder escolher é uma grande felicidade. Há portugueses que podem escolher, que Portugal não está a tratar bem, e que ainda assim aqui ficam. Conheço vários. Sou um desses em alguns dias mais cinzentos de humor. Mas ainda assim, sabem que podem escolher. Poder escolher é uma enorme felicidade.

Mas aquilo que me faz falta é sentir essa saudade. A saudade do cheiro, da comida de tacho, das sardinhas assadas, do clima, das varandas, até das marquises. A saudade da língua, dos palavrões, dos trocadilhos nacionais que são um segredo só nosso. A saudade de vir ao Porto e dizer que não há gente como a nossa. A saudade dos lisboetas, mesmo dos queques e cocós, e do seu orgulho na capital mais luminosa do mundo. A saudade dos espirros que anunciam a Primavera, das cerejas vendidas na rua, do dia da espiga que anuncia o bom tempo. A saudade do cheiro a praia quando o verão se aproxima, a saudade da terra molhada quando o outono entra. A saudade dos dias de chuva quando chega o Natal, de descer o Chiado sem chapéu-de-chuva em dia de chuva. Saudades do meu bairro, da praça, do senhor Sadik dos legumes e do senhor Alcides do talho. Saudade da minha praia, do nosso Alentejo, das Beiras da minha avó. 

Gostava de sentir esta saudade. De a experimentar, pelo menos. De me sentir mais portuguesa porque sinto falta de tudo isto que é Portugal. De ter a certeza que sou parte disto e não apenas que nasci, cresci e vivo aqui. Nos dias que não são de Portugal tenho dúvidas frequentes, não estou segura que este país seja para todos que cá estão e menos ainda que a maioria dos que cá estão seja o meu país. Gosto de tanto e desgosto de outro tanto. Se calhar é assim em todo o lado. Os países são mais que a soma dos sabores, cheiros e manias comuns. Os países são memórias e por isso são também são sabores, cheiros e manias. Mas não só. Gostava de saber o que são saudades de Portugal, mas detestava ter saudades dos portugueses de quem gosto.Todo este Portugal está nas pessoas de quem gostamos. As pessoas de quem gosto são o meu país. Com elas até acho que fazia um país novo. Sem elas qualquer sítio é inóspito. E essa saudade ninguém merece. E não, não é a mesma coisa de quem vai ali e já volta.   

 

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por sparks às 16:23

Quinta-feira, 31.07.14

Um país à borla

 

A notícia sobre mais um recrutamento 'criativo' no mercado voltou a ser tema de conversa. Trata-se de um recrutamento para uma agência com o objectivo de trabalhar uma marca de um cliente real e, supõe-se, com uma factura real a ser cobrada. Não são estágios curriculares, mas sim, segundo os promotores,  uma oportunidade para "trabalhar no novo laboratório criativo da agência".

 

A coisa pode ser apresentada de várias formas.

1. trabalhar à borla

2. ganhar experiência

3. trabalhar à borla e ganhar experiência

4. ganhar formação à borla

5. ter 'visibilidade' no mercado de trabalho

6. facturar ao cliente com trabalho à borla

 

Como é fácil de ver, a palavra mais recorrente é mesmo borla. Nós aqui em Portugal somos o país das borlas. Basta olhar para as médias de subscrição de serviços pagos naqueles sites que oferecem uma parte 'à borla' versus outra parte 'paga'. Nós batemos qualquer estatística europeia: à borla tudo, pago, quase nada.

 

Para alguns tem tudo a ver com a pobreza endógena do país. 

Temo, em muitos casos, que tenha muito mais a ver com duas coisas que decorrem de outro tipo de pobreza. Uma é a chica-espertice. Outra é a subserviência.

 

Do ponto estritamente económico e empresarial, este ciclo é do pior que há. 

As empresas que podem pagar mais, tudo fazem para pagar nada. As empresas que estão no meio - a esmagadora maioria das empresas em Portugal - tudo fazem para simplesmente sobreviver. No manual de sobrevivência, a regra do  quase à borla é de ouro. Para poderem fazer preços quase à borla têm de ter trabalho à borla. O efeito disto escada abaixo é mais ou menos de aritmética pura: vamos tirando dinheiro de cima para baixo e quando chegamos à base de suporte de qualquer economia - o consumo privado - encontramos malta que não tem dinheiro para gastar. Logo não compra, logo as empresas maiores para manterem o seu status quo têm de espremer as outras - as que estão stuck in the middle. E assim sucessivamente. Com uma particularidade adicional: quando a malta do trabalho à borla consegue ganhar algum dinheiro, já tem doutoramente em todas as formas de viver à borla (estou a falar da malta 'normal'. não de quem passa a vida a pedir o iphone seguinte ao pai e à mãe). E assim sucessivamente.

 

Já mudávamos de vida, já.

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por sparks às 13:46

Domingo, 18.05.14

Um tipo inteligente e com ideias, um dia chateia-se, e vai-se embora

A distância entre o que 'as pessoas normais' pensam e vivem e aquilo que é apresentado como a decisão de 'todos nós', aka decisão de quem nos representa,  surpreende-me cada vez mais. Não estou inserida em nenhum gueto ou facção, não faço parte de nenhum partido político e, entre família, amigos, conhecidos e redes profissionais, conheço pessoas da dita direita e esquerda, mais pobres e menos pobres, com religião e sem religião, empregados e desempregados e por aí fora. Pessoas diferentes em circunstâncias diferentes. E nunca como agora tenho, repetidamente, sentido o mesmo sentimento de descrença no país - não em Portugal, mas neste país, nesta élite e nesta moldura cristalizada de poder. 

 

Ontem estive em mais um desses momentos. Fui assistir de manhã a uma aula com o professor Sverker Alänge que esteve em Portugal a convite da Universidade Europeia e do professor José Manuel Fonseca (que, por sua vez, teve a gentileza de me deixar fazer parte da sessão). 

Sverker Alänge veio falar de modelos de inovação na Suécia e sobretudo veio lançar a discussão sobre o que ajuda a inovação e o que a torna difícil. Durante a sessão desafiou cada um de nós a listar o que consideravamos ser obstáculos e facilitadores da inovação em Portugal. Nos obstáculos, estava lá muito do que debatemos há décadas - falta de estratégia e de visão de médio e longo prazo, aversão ao risco, falta de competências de gestão a quem gere, insuficiente (ainda insuficiente) ligação das empresas às universidades e por aí fora. Mas onde acabámos por nos deter, por várias vezes, foi na dificuldade crescente de acreditar que fazer as coisas bem compensa. Também podemos descrever este sentimento de outra forma: 'os maus' ganham e não há recompensa para os bons. Parece infantil? Não é. 
Sverker Alänge dizia e bem - a propósito do modelo de inovação do Google, empresa que tem a ideia de 'do no evil' nos seus valores de referência - que a ética se aprende em casa, quando somos crianças. Coisas como não mentir, roubar é feio, não se deve ser interesseiro, cobarde ou subserviente são temas que estão nas histórias que contamos aos nossos filhos em pequenos. Histórias que nos ajudam a estabelecer pontes para a vida real, heróis do bem e do mal que são facilitadores da interpretação do mundo. Um dia, crescemos. Um dia, os nossos filhos crescem. E, na maior parte dos casos, nada orgulha mais um pai ou uma mãe do que saber que criou boas pessoas, bons cidadãos, bons profissionais. Ninguém cria um filho a pensar 'eu quero mesmo é que tu cresças a ser um refinado filho da p***', pois não?E quem ensina os mais novos, já passou pelo mundo do trabalho e pelas mazelas que afectam os 'crescidos' - ainda assim, em maioria,  continua a passar bons valores e a querer que um filho seja, antes de tudo, boa pessoa.
Então onde é que isto tudo se estraga?
Estraga-se naquele dia em que nós, os nossos filhos e se nada for feito, os nossos netos, percebem que ser boa pessoa e ser bem-sucedido é uma conjugação impossível em vários contextos profissionais. Ou que há um tecto de sucesso se insistirmos em algumas patetices que nos ensinaram quando éramos crianças.
O que é que isto tem a ver com inovação? Tudo.
Precisamente porque um dos facilitadores de inovação de que hoje dispomos é a qualificação crescente em várias áreas. Ir para a universidade não resolve tudo nem tão pouco é a poção mágica para qualquer um, mas a verdade é que nunca como hoje tivemos tantos jovens talentosos, competentes e ávidos de fazer coisas novas. São muitos destes - mais e menos jovens - que estão a sair do país (e não, não é a lenga-lenga habitual). A razão porque saem é financeira - também - mas é cada vez mais cultural. Porque razão alguém inteligente, qualificado, capaz tem de se submeter à hierarquia de gente mais burra, menos qualificada, menos capaz? É insultuoso para uma pessoa inteligente - e decente - depender de favores de um boy que um dia será ministro, o mesmo que anos mais tarde terá um lugar importante num lugar de nomeação pública ou numa grande empresa, em pagamento da comissão de serviço ao partido que serviu. Uns saem e outros, igualmente inteligentes, criativos, capazes, desgastam-se, amargam ou desistem. Em nenhuma das duas situações, o país ganha e avança.
Este é um gigantesco obstáculo à inovação. Os melhores de nós não têm acesso ou não têm paciência (ou ambos) para atravessar a densa malha que separa 'as pessoas normais' dos seus legítimos representantes. Somos uma democracia, tudo o que tem sido feito, tudo o que continua a ser feito, é em nosso nome, com o nosso consentimento. E nós continuaremos democraticamente a consentir, como poderemos ver já na próxima semana, desde que haja pão e bolos e de vez em quando umas esmolas (como os extraordinários reembolsos de IRS em vésperas de eleições, depois de o Estado-que-todos-elegemos ter capitalizado juros em cima dos nossos descontos adicionais - estejam gratos!).
“O Passos Coelho foi eleito por 15 mil pessoas e o António José Seguro por 24 mil. Isto são os partidos sem povo.” Quem o diz é o professor Adelino Maltez, de quem tive o privilégio de ser aluna, num artigo publicado no Público. Os mesmos 15 mil e 24 mil, respectivamente, que preenchem o tal arco do poder, essa tríade maravilhosa entre partidos, Estado e empresas que decidem sobre 90% dos aspectos da nossa vida colectiva. Decidem sobre o que é inovação e o que não é, que ideias merecem a glória da sua benção e as que não, quem entra e quem fica fora do círculo do poder.
Dito tudo isto, ainda não tivemos, como humanidade, uma ideia melhor que a democracia. Apenas não é esta democracia.
Vale a pena, já agora, ler um livro recomendado pela Clara Ferreira Alves, "O Capital do século XXI", escrito por um francês, Thomas Piketty. "Segundo ele, estamos a regressar a uma idade de ouro de uma nova aristocracia, a do dinheiro. Ou seja, os herdeiros e descendentes desta gente reterão no futuro as rendas e dividendos da riqueza e do capital acumulados, sem esforço".

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por sparks às 16:21

Quarta-feira, 20.11.13

O imprevisto está à espera de uma oportunidade.

Tive o privilégio de ainda ser aluna deste senhor. Por causa dele não me desiludi tanto quanto podia com o 1º ano de universidade que me pareceu na maior parte do tempo um retrocesso face ao exigente 12º ano com excelentes professores que tinha tido.

Mas as aulas com Adriano Moreira eram diferentes. Porque ele é, de facto, um professor em todo o sentido do termo. Um contador da História e um humanista.

Hoje deixo aqui este excerto da entrevista à Renascença que vale pelo todo mas sobretudo por esta frase: O imprevisto está à espera de uma oportunidade.

 

"A legitimidade de exercício do Governo tem sido bastante afectada"

Que propostas alternativas à austeridade é que devem ser colocadas em cima da mesa?
Só conheço uma sede onde podem ser modificadas estas orientações: chama-se Conselho Europeu. Conheço outra sede, que nunca foi experimentada, que é o Conselho Económico e Social das Nações Unidas. E é aí que as coisas têm que ser discutidas. A situação, apesar de algumas certezas que os economistas têm e depois os resultados não correspondem, é a seguinte: juízos de certeza ninguém pode fazer; juízos de probabilidade são uma audácia; e juízos de possibilidade devem ser feitos sempre com a prevenção de que pode acontecer outra coisa. O que me leva a concluir que o imprevisto está à espera de uma oportunidade.

O que é que quer dizer com isso?
Você não pode adivinhar os resultados. O imprevisto está à espera de uma oportunidade.


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por sparks às 20:26

Segunda-feira, 21.10.13

Toda a nossa vida, em democracia, tem sido passada a escolher o mal menor, na merda da política, é isso sujar as mãos.

Pequeno resumo para quem não leu a entrevista de Clara Ferreira Alves ao ex-primeiro-ministro José Sócrates. O homem estudou e precisa dessa legitamação 'intelectual'. Acho bem, mesmo pecando pelo excesso de efeitos especiais. (se tivesse sido enxovalhada publicamente por ter obtido méritos académicos por favor, faria o mesmo, seria mesmo a minha prioridade número 1). O homem não tem pejo no uso da palavra. Uma merda é uma merda, um estupor é um estupor ('a merda' da política e o 'estupor' do Schauble, ministro alemãos das Finanças). Acho bem, mesmo com o desconforto de ser dito na 'estilo' Sócrates. Estou absolutamente farta da tribo que para dizer 'vou-te lixar' diz que 'vamos proceder a um ajustamento tendo em vista a correcção de problemas estruturais'. O homem não se verga (mesmo quando, às vezes, devia aceitar a vénia). Acho bem, mesmo que haja aquela grande dose de teatro própria do protagonista. Num país que vive a pedir desculpa, a curvar-se perante a força e não perante a razão, num país que perdeu respeito por si próprio, sabe bem algum desplante, mesmo alguma desta teatralidade.

Dito isto, José Sócrates continua a ser José Sócrates. Um actor, um 'animal feroz' (apesar desse epíteto ter sido uma maldade que o Expresso lhe fez, segundo diz nesta entrevista), um egocêntrico. Continua o José Sócrates que acha Miguel Relvas 'um gajo decente' e que se indigna quando lhe perguntam sobre amigos como Armando Vara ('eu admito lá a alguém juízo moral sobre os meus amigos''). Continua perito no drible. Não se falou de PPPs e do seu mandato directo a Paulo Campos que nos vai custar mais de 1000 milhões de euros. Defendeu qual mero soldado de Keynes aumentos escabrosos na Função Pública em ano de eleições (o mesmo Sócrates que garante não receber ordens de ninguém na Europa não pode dizer que cumpriu ordens da Europa para estes aumentos). Justifcou que não sabia o que 'aquilo' era - 'aquilo era o BPN, 'aquilo' são mais de 3 mil milhões de euros desembolsados por todos nós, 'aquilo' é a  desfaçatez do tal arco do poder em Portugal, o país em que polítcios, advogados, doutos consultores e homens de negócio, sempre os mesmos, são de facto uma casta acima da lei.
Dito isto, seria só mais uma entrevista. Já houve outras. A célebre da RTP em vésperas de regressar como comentador.
Seria só mais uma entrevista, não fosse o detalhe, em on, e na voz directa, dos momentos que precederam o resgate de Portugal pela Troika.
Do relato exaustivo da negociação com Berlim, do jantar com Merkel e o 'filho da mãe' do Schauble, da cumplicidade com Durão Barroso na construção do PEC 4 para evitar o resgate. Da partilha dessa negociação com Pedro Passos Coelho e com Cavaco Silva antes da apresentação pública. E da decisão tanto de um como de outro, na altura líder da oposição e Presidente da República, respectivamente, de invocarem o desconhecimento de tudo isto para provocar a crise política. Não sou ingénua ao ponto de dizer que foi'o desconhecimento de tudo isto a provocar a crise política que levaria ao resgate'. A ferida é muito recente e  não parou de sangrar desde então. E nestas circunstâncias não se vê a pele, não se vê o corte, não se vê a carne. Tudo se sobrepõe num só.
Mas o ponto, para mim, é só um.
A não ser que tenha existido um desmentido convicto, formal e indignado destas afirmações de José Sócrates, Pedro Passos Coelho construiu uma vitória eleitoral e um mandato subsequente assente numa mentira primeira. Cavaco Silva apadrinhou.E a vida continuou, igual como sempre.
"Toda a minha vida foi passada a calcular o mal menor, na merda da política, é isso  sujar as mãos", resume José Sócrates. 
Toda a nossa vida, em democracia, tem sido passada a escolher o mal menor, na merda da política, é isso sujar as mãos. As nossas mãos, de todos nós.
Da entrevista de Clara Ferreira Alves a José Sócrates
Expresso, 19 outubro 2013
(*) 'Negociei com a Europa e com Barroso e com o BCE a solução. Se eles estivessem de acordo, assinavam por baixo. Foi difícil. A parte final foi o jantar com a Merkel, e fui a Berlim porque ela teve a decência de me convidar. Noutro jantar ficara ao lado dela e ela dissera que gostaria de dar uma palavra em defesa do nosso país e dar um sinal claro aos mercados. (...)Em fevereiro ou março de 2011, a Grécia e a irlanda já estavam em programa. A Europa não queria mais ninguém. Em Berlim, tudo muito formal, conversámos e fomos jantar. A Merkel está do outro lado com aquele estupor do ministro das Finanças, o Schauble, que foi agora corrido. Todos os dias esse filho da mãe punha notícias nos jornais contra nós. (...) No jantar, ela pô-lo ao lado para o comprometer. Disse: devo ser a única na Alemanha que acha que vocês não precisam de ajuda! Eu respondo-lhe que não se trata apenas de Portugal, se houvesse mais um caso de falhanço era mau para nós e para a Europa. E disse que propusera o PEC previamente negociado com o BCE e com a Comissão, de forma a evitá-lo. O programa era restritivo para contar o apoio do BCE. Merkel respondeu: é isso mesmo! (...) Regresso de Berlim e acho que temos isto feito. Tínhamos uma semana para concluir o negócio. (...) Chamei o Passos Coelho para lhe dar conta da situação (...) Passos Coelho sempre disse que não sabia de nada. 'Mentiu e deixou que outras pessoas mentissem. Ele sabe o que me disse'
Da crónica de Clara Ferreira Alves | A história universal da infâmia
Expresso, 19 outubro 2013
'Como conta Sócrates na entrevista que hoje se publica, Barroso sabia o quanto este programa tinha custado a negociar e concordava com a sua aplicação, preferível à sujeição aos ditames da Troika, numa clara perda de soberania que a Espanha de Zapatero e depois de Rajoy evitou. Pedro Passos Coelho foi a São Bento e concordou. O resto, como se diz, é história e não é contada por José Sócrates que um dia a contará toda. No livro [Resgatados, de David Dinis e Hugo Coelho], conta-se que uma personagem chamada Marco António Costa, porta-voz das ambições do PSD, entalou Passos Coelho entre a espada e a parede. Ou havia eleições no país ou havia eleições no PSD. Pedro Passos Coelho escolheu mentir ao país dizendo que não conhecia o PEC4. Cavaco acompanhou. E José Sócrates demitiu-se, motivo de festa na aldeia. (...) Entre os portugueses e a luxúria do poder, Pedro Passos Coelho escolheu o poder. Fica registado.'

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por sparks às 00:39

Terça-feira, 15.10.13

Ainda não é pobre? Temos de tratar de si

É voz comum dizer-se que é tudo uma questão de atitude.

Não sei se será verdade com tudo, tudo. Mas, em algumas situações, é de certeza.

Por exemplo, face ao dinheiro ou à falta dele. Podemos pensar em tudo o que vamos deixar de fazer porque não temos dinheiro. Ou então pensamos em tudo o que temos de fazer para não deixar de fazer as coisas que gostamos ou precisamos. Ou ambos, devidamente compensados.

 

Vem isto a propósito da ignomínia que reina quando o tema é a dívida, as dívidas, a falta de dinheiro, a falta de emprego, a falta de investimento em Portugal.

Não ouvimos mais nada há três anos que não a palavra corte. Nunca ouvimos nada sobre como vamos ganhar mais dinheiro (a sério). Ou como vamos criar mais emprego (a sério). Ou como vamos bater-nos por uma política diferente e não apenas seguidista (a sério). Ouvimos sempre 'menos' e nunca 'mais'. E não tenho qualquer dúvida que há muitas contas de menos essenciais, as crises mostram sempre a ineficiência e o desperdício. Mas não há memória de nenhum país que tenha vencido uma crise sem olhar para o 'mais', sem perceber que a esperança é tão essencial como a moeda. 

 

No início eram os cortes da magnífica austeridade, o extraordinário plano da troika que nos iria purificar dos erros cometidos.

Depois, passámos ao Estado de guerra civil. Os 'privilegiados' da Função Pública versus os 'sacrificados' da iniciativa privada (ui, e o que se podia escrever sobre isto, de um lado e de outro).

No último ano, sobretudo depois do fracasso da TSU/15 de Setembro 2012, a discussão passou de ideológica (liberais da treta versus sociais democratas também da treta) a pornográfica. Não encontro outro termo. Colocar nos mais velhos a 'culpa' das reformas para as quais contribuíram uma vida é pornográfico. Incutir nos mais novos uma sanha assassina em relação aos velhos que lhes roubam os empregos (esses velhos de 45 anos ...) ou lhes sugam os descontos (para os que trabalham) é um corte nas entranhas. No país, na sociedade, na razão porque permanecemos juntos.

Depois de estarmos todos devidamente entrincheirados, sobra o quê? Um darwnismo do chica-espertismo? O chico mais esperto de todos? E fazemos o quê?

 

Nada me irrita mais do que as soluções únicas. A derradeira opção. E tudo isto é sempre apresentado assim - não há opção. Cobardemente, face a cada contestação, lá se descobrem outras opções. Porque, naturalmente, há sempre outras opções.

Na semana passada, depois da fuga de informação organizada (e que bem!), depois da demagogia empoleirada em dois plafonds de vida, o do 600 euros e o dos 4000 euros, voltou a ser injectado o Estado de guerra civil. Os 'pobres' dos 600 euros contra os 'ricos' dos 4000 euros. Mesmo que os 'ricos' tenham contribuído uma vida inteira para essa 'riqueza'. 

E foi então que soubemos que afinal não se é rico aos 4000 euros, mas sim a partir dos 2000 euros. Porque - mais uma volta no Estado de guerra civil - há velhinhos e velhinhas que vivem com 170 euros. Depois do que ouvi e do que li, só me sobrava uma pergunta: ainda não é pobre? É isso que o Estado, este Estado, nos está a perguntar a todos. Ainda não é pobre? É que se não é, temos de tratar de si. Temos de fazer de si pobre. Para nos purificar. Para nos tornar a todos iguais no estado de 'miseráveis'. E, no fim, sobrarão só miseráveis e gente importante que decide sobre os miseráveis.

 

Eis o Estado forte com os fracos. Eis o Estado fraco com os do costume, sempre os do costume. Eis o Estado que não quer ter outras opções - isto não é um erro, uma incapacidade, uma perturbação - é um acto de vontade.

E eis um país em que os cidadãos são sitting ducks. Na mira. Por isso, é cada vez mais difícil falar do que corre bem, das empresas que estão a vender mais, das instituições que conseguem fazer coisas acontecerem. Se for público, o mais provável é, no dia seguinte, terem o fisco à porta a perguntar-lhes: ainda não é pobre? Temos de tratar de si.

 

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por sparks às 18:15

Domingo, 06.10.13

Eu vi e vou informar a viatura.

Em tempos de crise acontecem coisas estranhas. Algumas boas, algumas más. Em tempos de crise e de grandes dificuldades, por exemplo, há ditadores que se afirmam. Em tempos de crise e de grandes dificuldades, por exemplo, há pessoas extraordinárias que mudam o rumo dos acontecimentos. Portugal está em crise há mais tempo do que todos temos memória. Mesmo quando não estávamos em crise, na realidade, não tínhamos deixado de estar.

 

Vem isto a propósito de este fim-de-semana ter, supostamente, batido num carro num parque de estacionamento.

Confusos? Eu explico.

 

Fui almoçar com a minha amiga Helena a um centro comercial. Almoço tardio, já passava das 3 da tarde. Chegámos ao parque, ensaiei estacionar num primeiro lugar, e com o sábio conselho de quem me acompanhava, percebi que era talvez carro a mais para aquele espaço ou para a minha destreza / minúcia no estacionamento. 

Estacionei duas filas adiante e ficámos mais de 3 horas - 3 horas, sublinho - no dito parque.

Almoço, café, conversa, shop-seeing. 

Quando regressamos ao parque, temos um carro a trancar a nossa saída com um papel no tablier que dizia apenas, em jeito de loja em horário de almoço, 'volto já'  seguido de dois números de telemóvel. Enquanto, com razão, a minha amiga praguejava, eu reviro a mala à procura do telefone. Ligo, ao mesmo tempo que ambas reparamos num papel colocado na porta do carro. Ainda tentamos ler a missiva, mas entretanto somos cercados por mãe e filho, respectivamente o dono do carro que nos trancou e a dona de um outro carro estacionado no mesmo parque. Ainda não tinha tido tempo de dizer nada e já estava a ser literalmente bombardeada com o facto que bati num carro (o da senhora), fugi (para longe, está bom de ver, duas filas à frente), mas fui 'apanhada' porque houve um cidadão honesto (o autor da missiva na porta do carro) que viu e que tratou de me por na linha, ao mesmo tempo que deixava uma missiva ainda mais detalhada no carro da lesada, à qual, que nem Batman salvou de um perverso (a) vilão (ã).

 

Bom. As mulheres são distraídas, é bom de ver, e duas mulheres, amigas, em tarde de sábado, são duplamente distraídas. E perigosas, como vamos ver. Estas duas mulheres, distraídas e perigosas, não tinham dado pelo facto de terem abalroado um carro (ainda por cima novinho, com 7 dias, ainda por cima com matrícula espanhola, que a senhora mora em Madrid). 

Ainda não recompostas do efeito 'bloqueadas-apanhadas-acusadas', vamos de passo miudinho até ao carro da senhora. Pelo caminho, curto, menos de 20 segundo, tive antevisões de portas abalroadas, para-choques descaídos, faróis partidos. A tragédia, o horror, a calamidade. A somar à estupefacção e algum terror secreto pelo meu alheamento (como é possível, como é possível???).

Chegamos ao carro da senhora e passo a acreditar que tenho um problema maior de visão do que aquele que os meus óculos exigem. Onde está a batida? A porta abalroada? O para-choques destruído? 'Desculpe, mas bati onde?'. Aqui. Aqui??? Onde? 'Aqui, não vê?'. Não, não vejo, não, não víamos. Tive de me agachar e colocar quase o nariz no para-choque para lá conseguir descortinar um arranhão, provavelmente resultado (tenho de acreditar que foi) da minha tímida tentativa de estacionar no primeiro lugar.

 

A dona do carro arranhado não parava de dizer que estava muito nervosa (!), eu que estou irritada mas não nervosa lá lhe vou dizendo que não tem de porque estar assim, fizeram-se seguros ou passam-se cheques para isto mesmo. E só depois de o dizer três ou quatro vezes, a senhora e o filho lá percebem que não sou uma perigosa criminosa e começam a falar como pessoas ... normais. E lá vão dizendo que foram informados também por uma missiva, deixada no carro deles. Ao ler a missiva, passo de irritada a estarrecida. 

 

Houve alguém, naquele centro comercial, que reparou que eu tinha dado um toque noutro carro, que me seguiu até ao segundo lugar escolhido para estacionar, que esperou que eu saísse do carro e então sim foi deixar recadinhos em ambos os carros, da vítima e da criminosa, naturalmente em tons adequados a cada interlocutor. A missiva para a vítima dava conta da campanha vitoriosa em perseguição da bandida (citando: bateram no seu carro e fugiram, mas eu segui-os e tirei-lhes a matrícula). A missiva para mim, a criminosa, denunciava-me: 'eu vi e vou informar a viatura onde a senhora bateu' (entre outras pérolas de português).

 

Factos.

1 - Não dei conta do arranhão.

2 - 'Fugi' para duas filas à frente.

3 - Entrei num centro comercial e fiquei mais de 3 horas 'foragida' entre lojas e cafés. 

4 - Regressei ao local do crime.

5 - Não hesitei em ligar à vítima (bem apanhada, hem!)

6 - O justiceiro naturalmente não nos confrontou porque somos duas perigosas mulheres de 1,60 com ar ameaçador e armadas até aos dentes.

 

Tratámos das formalidades e, findo esse tempo, o rapaz já dizia: 'a sua amiga tem razão, a pessoa ainda se foi embora achando que tinha feito a boa acção do dia'.

 

Em tempos de crise acontecem coisas estranhas. Uma delas é exacerbarmos o que temos de bom, de excelente, de extraordinário. Massagens à auto-estima. Os portugueses, que povo extraordinário.

Em tempos de crise devíamos aproveitar e fazer uma revisão da matéria dada. Nomeadamente aquele capítulo sobre Portugal em que olhamos de frente para o facto de pessoas grandes, excelentes, extraordinárias habitarem o mesmo país que pessoas mesquinhas, cobardes, invejosas e tantas vezes estarem em minoria. E como esses terríveis defeitos já se impuseram tantas vezes na nossa história, nos fizeram atravessar silenciosamente 50 anos de ditadura (entre outras coisas) e persistem como traços de identidade em muitos de nós. Também eles portugueses.

 

É óbvio que todas estas características fazem parte do vastíssimo leque inerente à natureza humana. Mas os povos são mais assim ou mais assado, chama-se a isso identidade, tem razões culturais, sociais, antropológicas, entre outras e está estudado. Já o escrevi várias vezes e vou repetir: para sermos grandes e inteiros como dizia o poeta temos de vencer a mesquinhez que nos acompanha há gerações. É um trabalho para outras tantas gerações, resolve-se em casa, na escola, nas empresas, na vida em comum. E temos de tratar disso.

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por sparks às 22:47


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