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X-Acto

Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos


Quarta-feira, 10.06.15

Quero ter saudades de Portugal.

A RTP exibiu esta manhã uma reportagem sobre os emigrantes. Vem a jeito do 10 de junho. Vem a propósito do Dia de Portugal. A reportagem está bem feita. Na preguiça da manhã que corre devagar deixei-me ficar com o comando na mão mas sem trocar de canal. Os emigrantes estão na Suíça. A vida ali é diferente, garantem. "Não podíamos levar aqui a vida que levávamos em Portugal". Qual vida? A vida de casa-trabalho e um bónus ao fim de semana com um passeio em família. "Ao centro comercial?", pergunta a jornalista. Sim, confirmam, ao centro comercial. Fico sem saber se essa era a 'boa vida' versus a vida dura no estrangeiro. Fico sem saber se é uma vida melhor ou pior, a que agora têm. Mas sei que não tencionam voltar - "Portugal só é bom para férias e mesmo assim não pode ser muito tempo". Ganham sete vezes mais na Suíça. Os filhos gostam da Suíça.

Outros emigrantes estão em Angola. Já pensaram voltar a Portugal, mas a troika fê-los desistir da ideia. Para os próximos quatro ou cinco anos também não querem ter ideias dessas. Angola dá-lhes 'a estabilidade que Portugal lhes tirou'. Angola dá-lhes estabilidade. Vivem bem. Têm emprego. A mulher da família descobriu uma oportunidade de negócio em Angola. O homem da família até gostava de abrir um negócio dele em Portugal - mas Portugal não está para isso.

Outros emigrantes voltaram. Um dos que vejo na reportagem foi para Inglaterra e voltou. É professor primário. Portugal continua na mesma, diz. Mas ele não estava disposto ao esforço que Inglaterra lhe exigia numa escola em que se falavam 32 línguas.

A reportagem fala ainda dos portugueses felizes. Um dos investigadores chefes da Fundação Champalimaud. Ou outro chef, o Kiko Martins, que já correu mundo - porque quis, não porque precisou. São portugueses felizes porque podem escolher. Poder escolher é uma grande felicidade. Há portugueses que podem escolher, que Portugal não está a tratar bem, e que ainda assim aqui ficam. Conheço vários. Sou um desses em alguns dias mais cinzentos de humor. Mas ainda assim, sabem que podem escolher. Poder escolher é uma enorme felicidade.

Mas aquilo que me faz falta é sentir essa saudade. A saudade do cheiro, da comida de tacho, das sardinhas assadas, do clima, das varandas, até das marquises. A saudade da língua, dos palavrões, dos trocadilhos nacionais que são um segredo só nosso. A saudade de vir ao Porto e dizer que não há gente como a nossa. A saudade dos lisboetas, mesmo dos queques e cocós, e do seu orgulho na capital mais luminosa do mundo. A saudade dos espirros que anunciam a Primavera, das cerejas vendidas na rua, do dia da espiga que anuncia o bom tempo. A saudade do cheiro a praia quando o verão se aproxima, a saudade da terra molhada quando o outono entra. A saudade dos dias de chuva quando chega o Natal, de descer o Chiado sem chapéu-de-chuva em dia de chuva. Saudades do meu bairro, da praça, do senhor Sadik dos legumes e do senhor Alcides do talho. Saudade da minha praia, do nosso Alentejo, das Beiras da minha avó. 

Gostava de sentir esta saudade. De a experimentar, pelo menos. De me sentir mais portuguesa porque sinto falta de tudo isto que é Portugal. De ter a certeza que sou parte disto e não apenas que nasci, cresci e vivo aqui. Nos dias que não são de Portugal tenho dúvidas frequentes, não estou segura que este país seja para todos que cá estão e menos ainda que a maioria dos que cá estão seja o meu país. Gosto de tanto e desgosto de outro tanto. Se calhar é assim em todo o lado. Os países são mais que a soma dos sabores, cheiros e manias comuns. Os países são memórias e por isso são também são sabores, cheiros e manias. Mas não só. Gostava de saber o que são saudades de Portugal, mas detestava ter saudades dos portugueses de quem gosto.Todo este Portugal está nas pessoas de quem gostamos. As pessoas de quem gosto são o meu país. Com elas até acho que fazia um país novo. Sem elas qualquer sítio é inóspito. E essa saudade ninguém merece. E não, não é a mesma coisa de quem vai ali e já volta.   

 

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por sparks às 16:23

Sábado, 20.07.13

"Adoro trabalhar com pessoas inteligentes"

Há temas que se atravessam no nosso caminho como aquelas músicas que não nos saem da cabeça. Esta semana, por várias razões, fui esbarrando com um destes casos. Em conversas, em decisões, em textos que li e até pelo facto de me ter cruzado, tardiamente, eu sei, mas ainda muito a tempo, com a ópera de Wagner, Die Meistersinger von Nürnberg(*).
Tem a ver com decisões estúpidas e não fundamentadas e a obediência cega a essas decisões. Tem a ver com a relação que os diferentes povos têm com a autoridade e com o poder - a nossa, a dos portugueses, não é especialmente boa (ou talvez deva dizer é especialmente boa), mas já volto a este ponto. Muitas das decisões estúpidas são tomadas pelos 'decisores' como se convenciona dizer. O tipo que manda, que tem a patente mais alta. Mas são executadas pelas chefias intermédias, os gestores que foram escolhidos para estar na linha da frente da execução. Nas empresas portuguesas, muitos destes gestores, senão a maioria, são hoje licenciados em Economia, Gestão, Engenharia, por aí fora, têm MBAs, alguns fizeram formação em escolas internacionais. Foram preparados para liderar. Supostamente.

 

Então por que razão alguns destes gestores mais se assemelham a cães amestrados? ou pior, nos casos mais radicais, àqueles cães que eram colocados na parte de trás do carro e que abanavam a cabeça de forma sincopada ao longo das viagens no carro do dono. Porque razão pessoas instruídas, que certamente tiveram algum professor extraordinário, que certamente leram, nem que por obrigação, algum livro revolucionário, que certamente participaram e participam em foruns onde gente expressa ideias novas, desafiantes, por vezes loucas, porque razão estas pessoas escolhem deliberadamente apenas obedecer, apenas executar?

 

Responder a esta pergunta sem ser de forma populista - 'querem é subir' ou 'é só graxa ao chefe' ou ainda 'são todos uns cagufas' - não é tarefa fácil. Mas, na realidade, é a única forma que me interessa, a outra pode ficar para as conversas de café.

 

Começando pelas empresas portuguesas, nomeadamente as maiores que pelo nível de amostragem constituem retratos do país que somos. O tema do mérito tem menos de 10 anos. E 10 anos não é nada. Depois houve algum azar nos timings, porque começou a falar-se de mérito mais ou menos ao mesmo tempo que a febre da gestão atacava todo o jovem universitário. E o jovem universitário da primeira década de 2000 já tinha pouco a ver com o gestor dos anos de ouro da década de 90. Mas, em tempos diferentes, queria repetir a história, subir rápido, ganhar muito, ser conhecido. Por isso, entraram aos molhos nas empresas, deslumbrados por se cruzarem nos elevadores com rostos que tinham visto na tv. Rostos de gestores 'geniais', os gestores dos grandes negócios (muitas vezes dos grandes monopólios) dos anos 90. Quando chegavam às empresas, geralmente nessa nova categoria de trainees, logo percebiam que o sucesso não estava logo ali ao virar da esquina, a chave do carro da empresa ia ser suada. Mas tinham uma meta. E a meta chamava-se ter sucesso e ter sucesso, na maior parte dos casos, significava e ainda significa ser chefe.

 

O que fazer para lá chegar? Passados os primeiros entusiasmos e até alguns rasgos rapidamente corrigidos, cedo perceberam que 'o caminho da liderança' seria tanto mais curto quanto menos opinassem e mais executassem. Certas regras tornaram-se espantosamente claras: em certas grandes empresas, com um MBA e o certo grau de amestramento, só precisas que os anos passem para chegares a algum sítio. Note-se: não a qualquer sítio. Mas tal como um cão recebe um biscoito quando executa na perfeição o exercício de nos trazer o jornal, é certo que há um prémio para quem executa na perfeição as ordens que lhe são dadas. Executar ordens de forma inexcedível tornou-se, em muitos casos, sinónimo de mérito. E aqui é de começar a ter medo.

 

Chegados aqui,poderão alguns pensar que esta é a defesa dos gestores rebeldes, em permanente desconcerto com as cúpulas, em estado de permanente insatisfação. Não é o caso.

Mas não conheço verdadeira inovação, verdadeira disrupção que não tenha na sua essência alguma insatisfação e contestação. Não me recordo de avanços, progressos reais, sem discussões apaixonadas, teses opostas, pessoas com ideias. Claro que tudo isto convive paredes meias com a disciplina e o rigor que são necessários para colocar grandes grupos de pessoas a trabalhar na mesma direcção. O que se discute aqui não é a marcha, mas o plano.

 

Procurando um pouco mais fundo, chegamos a um tema maior, o da relação dos portugueses com a autoridade e com o poder. Aprendo sempre muito a ler Malcolm Gladwell, mas uma das histórias que mais me impressionou nos seus livros, provavelmente relacionada com o meu medo de voar, tinha precisamente a ver com a forma como a nossa identidade cultural se manifesta na nossa relação com o poder e autoridade. Para evidenciar esta relação, Gladwell escolheu vários episódios da indústria da aviação, incluindo acidentes sérios, alguns fatais. O que tinham em comum? Erros humanos protagonizados por pessoas cuja relação com a autoridade as inibiu de tomarem decisões diferentes das que lhes foram ditadas. Num destes exemplo, um acidente fatal no aeroporto JFK, o piloto de uma companhia colombiana sobrevoou durante mais de uma hora a pista de aterragem, gastando o pouco combustível que lhe restava, porque foi incapaz de contrariar a voz de comando da torre de controlo que lhe indicava que ainda não tinha autorização para aterrar. O avisão despenhou-se. Teria bastado um 'não vou cumprir essa instrução , estou sem combustível e preciso de aterrar já'. 

 

Mais uma vez, imagino os cépticos. Que grande treta, dizer que é um problema de relação com a autoridade. A esses recomendo o livro de Gladwell e as citações integrais das conversas mantidas gravadas na caixa negra do avião. Depois disso, um pequeno exercício: quantas ordens erradas, prejudiciais à empresa ou mesmo completamente disparatadas já executaram sem pensar apenas porque era uma ordem?

 

Mais uma vez, poderíamos voltar à conversa de café e dizer simplesmente que os gestores intermédios têm vidas patrocinadas, são um investimento em si próprios e como tal basta o cinismo para interpretar as suas (não) decisões. Pode bastar, mas se queremos mudar o país, temos de mudar estas chefias intermédias e com alguma probabilidade esta é uma mudança com mais impacto do que simplesmente mudar os 'grandes chefes'. É neste meio campo que se jogam a maior parte das decisões do país e sob esta liderança que se encontram a maioria das pessoas que trabalham em Portugal. Se conseguirmos que estas lideranças, liderem, em vez de apenas executarem, teremos, no global, um país mais crítico, mais exigente e mais capaz. E talvez aí possamos a começar a elevar a fasquia e a mudar os grandes e os pequenos poderes. 

 

Para terminar, apenas uma espécie de confidência: temam sempre uma conversa de recrutamento para 'chefe' em que vos digam"adoro trabalhar com pessoas inteligentes". Até as coisas mudarem, é muito provável que para a frase ficar completa falte o resto: "don't play no game i can't win". 

 

 

 (*) Die Meistersinger. Uma história que se conta num triângulo formado pela guilda dos Mestres Cantores, que simboliza a rigidez das regras, por Walther, o génio que simboliza o caos criativo, e por Hans Sachs, o sapateiro e herói do bom senso, esse caminho sempre novo e sempre difícil entre o que está instituído e o que precisamos e devemos questionar. 

 

 

 

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por sparks às 23:22


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