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X-Acto

Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos


Quarta-feira, 28.08.13

A Europa vista daqui - 1428 km para nos tornarmos profissionais disto

 

 

Então estávamos em Copenhaga, capazes de ficar por lá e a lamentar não termos antecipado gostar tanto, mas tanto, daquela cidade, quando chegou a hora do comboio que nos levaria até Estocolmo. Duas pequenas notas prévias: a estação central de Copenhaga não é a maior, não é a mais moderna, mas é de certeza a mais bonita, a mais calorosa e a mais romântica. Quase temos vontade de romper um romance ali (para voltar) ou regressar a alguém que amamos naquele ambiente agitado q.b., com o seu telhado de madeira e ferro e uma atmosfera única de que as coisas só podem correr bem.

 

A viagem para Estocolmo foi a mais agitada de todas as deslocações de comboio que fizemos nestas férias. Para dar contexto: viajar na Europa com um voucher, vulgo bilhete Eurorail, vulgo Interail, está longe de ser uma experiência própria da 'casa comum europeia'. O mesmo é dizer que cada terra sua lei fundamental no que respeita aos estrangeiros e à linha férrea.

Recapitulando: de Praga para Berlim. Fomos previdentes e dirigimo-nos de véspera à estação. Mostrámos os nossos bilhetes, a senhora num checo gestual lá acenou afirmativamente que estava tudo em ordem e perante a nossa insistência - e em conferência com um colega - diz que é melhor 'to do a reservation'. Significa que se pagam 15 euros para garantir que temos lugares marcados no comboio. Não parece disparatado, pagamos e ficamos aliviados por saber que tudo está tratado. No dia seguinte, embarcamos para Berlim. A entrada na carruagem é digna de registo. Depois de alguma discussão sobre qual a carruagem, sem nunca olhar para o bilhete, é bom notar, lá escolhemos uma por comum acordo e, sendo dos primeiros a entrar, escolhemos uns belos lugares em que estamos todos praticamente juntos num compartimentop 4-1 lugar de coxia. Já estamos todos sentados, malas empoleiradas no suporte para as ditas, livros para fora da mochila, telemóveis, garrafas de águas, etc quando nos lembramos 'ah, e tal e será que estamos no lugar certo?'. O nosso chefe de banda saca dos envelopes dos bilhetes e qual mestre de cerimónia em atribuição de óscares informa que 'somos o 34, 35, 36, 37 e 38'. Um breve suspense enquanto reviramos os olhos em busca da numeração e … não é que estamos exactamente nos lugares que era suposto estarmos? Qual a probabilidade de isto acontecer*? Curtíssima. Mas aconteceu. Estávamos felizes, bem instalados e preparados para as quase 5 horas de viagem até Berlim. O comboio avançava devagar, a República Checa vista neste compasso nada fica a dever à beleza de Praga e a menos de uma hora de viagem entra a revisora de bilhetes. A 'pica'. Completamente descontraídos e com total segurança sobre bilhetes, rotas e lugares, estendemos os comprovativos (incluindo o da reserva de 15 euros). Leitura prolongada. Silêncio. Ligeiríssima inquietação do nosso lado. E eis que a senhora aponta para as datas do passe Interail e assinala, com evidente razão, que o nosso passe só é válido a partir de dia 20 e ainda é só dia 18. Nos minutos que se seguem, o que se ouve é uma verdadeira algarviada tuga entre aqueles de nós de praguejam com quem emitiu os bilhetes e se enganou nas datas, aqueles de nós que praguejam com a nossa própria indolência ao não ter verificado a data do bilhete (assumindo que tendo sido a mesma entidade a marcar tudo sabia bem as datas de check-in e check out em cada cidade e hotel) e aqueles que praguejam com a funcionária da CP de Praga que fez uma reserva para uma data não válida. 

A piada é fácil, eu sei, mas todos praguejam. Soluções? Pagar mais 27,5 euros até à fronteira com a Alemanha e depois logo se vê. Literalmente, é isso que nos é dito. Lá, logo vêem.

Chegamos a fronteira e nada acontece.

 

Passamos mais duas estações e nada acontece. Até que, a seguir a Dresden (**), cidade a que é impossível ficar imune sabendo da sua história ao longo da 2ª Guerra Mundial, nos anos que a precederam e que lhe sucederam, entra outro revisor. Alemão. Por uns segundos voei para outra era. Aqueles segundos que mediaram entre o revisor atravessar o corredor da carruagem e chegar ao meu lugar levaram-me a outra época, a outras vidas. A minha ansiedade de trazer por casa por estar 'ilegal' em solo alemão foi exponenciada ao que terão sentido milhões - e que ainda sentem hoje, noutras geografias - quando viajavam em roteiros de fuga, sabendo-se frágeis e passíveis de serem 'apanhados'. Aquela ínfima semelhança é terrivelmente aflitiva. E, bom, claro que fomos apanhados. Por um alemão austero, de inglês germânico e vocabulário reduzido que lá nos disse o que já sabíamos: estão a viajar sem bilhete. Alguma vantagem tivemos no facto de já não ser surpresa e explicamos toda a saga, da emissão errada, o hotel marcado em Berlim, a reserva feita em Praga. Ele acena, parece-me genuinamente mais preocupado em encontrar as palavras em inglês para se expressar do que outra coisa, e responde que sim senhor, mas que precisamos de ter um bilhete válido a partir de 'Zeborder'. Faço um esforço hérculeo para me recordar de todas as localidades que fomos olhando no mapa e pergundo de novo. Onde? E ele responde de novo, tenso (uma vez mais, acho que com a forma de se expressar): From Zeborder. Okay, okay … e quanto é 'from Zeborder'? 100 euros. Ou seja, 4 vezes mais do que de Praga a Schona. Tem a certeza do local, insisto. Sim, tem, e entre uns vocábulos aqui e ali finalmente percebo. Zeborder é simplesmente 'border'. O resto é sotaque. Portanto, as duas horas desta 'zeborder' a Berlim custam quatro vezes mais que de Praga à 'zeborder'. O custo da centralidade começa a fazer-se sentir.

Fora os 127,5 euros gastos no total numa viagem que já estava paga, a viagem foi boa. Chegar a Haupt Bahnhof foi um momento único. Ainda não será hoje que escrevo aqui sobre Berlim, porque o tema são comboios, mas vou voltar exactamente aqui, gare de Haupt Bahnhof.

 

Continuando na linha férrea, a viagem de Berlim para Hamburgo e de Hamburgo para Copenhaga foi perfeita. Copenhaga deve ser uma espécie de palavra-senha para que tudo seja perfeito. Na realidade, aqui o mérito é alemão, já que é uma linha operada pela CP germânica, mas para o que importa foi uma viagem perfeita. Vejamos: depois de tudo devidamente resolvido com a entidade emissora, os nossos bilhetes estavam em ordem, não foi preciso reserva prévia porque há lugares sempre disponíveis (os não assinalados com numeração a vermelho em pequenos placares digitais por cima de cada compartimento), o comboio tem o ritmo ideal para ler, conversar, dormitar e ouvir as conversas dos outros e a viagem é linda. Inclui uma travessia de ferry onde há um verdadeiro centro comercial a bordo mas sobretudo uma paisagem e um ar fresco que valem muito a pena. Sem enjoos e com uma vénia de reverência por aquele ferry que leva um comboio enorme lá dentro.

 

Já aqui escrevi que a gare de Copenhaga é a mais bonita. Por isso, ainda custa mais ir embora, mesmo que mimados não por um, nem por dois, mas por três empregados/as da estação que nos informam sobre os horários, tempo de viagem, paragens, etc até Estocolmo. Estamos tão absolutamente rendidos a esta simpatia e calor humano que nem nos lembrámos de uma pergunta que já devia ser obrigatória: é preciso reservar lugar?

E, ao invés da viagem anterior, tudo começou mal desde o início. Entramos felizes, completamente em 'danish mode' e ainda não nos tínhamos sequer instalado em pleno e já temos duas jovens carrancudas (e feias, é terrível dizer isto, mas depois de tanta mulher bonita em Copenhaga, a fasquia vinha alta) a esbracejarem em sueco para os nossos três adolescentes que aqueles eram os seus lugares (dois deles). Levantam-se dois dos nossos, damos instruções ao terceiro que se mantenha para não perdermos totalmente a face mas algo nos diz que 'isto' é só o princípio. E é. Mais uma vez, qual a probabilidade de numa só carruagem, cada vez que entra alguém novo, um dos nossos adolescentes ser desalojado? E qual a probabilidade de os dois adultos da família nunca serem desalojados? Ambas curtas, sobretudo em simultâneo, mas aconteceu assim. A viagem, essa, foi uma desassossego constante. Um revisor sueco quis-nos cobrar 40 euros por uma reserva que devia ter sido feita, mas quando lhe perguntámos se, pagando, aqueles lugares ficavam nossos para sempre, respondeu que não. Desta vez já estamos profissionais. Quase em coro: 'não faz sentido'. E desatamos a enumerar as várias práticas que já fomos observando ao longo da linha de 1428 km que liga Praga a Estocolmo. 'Praga?', interroga-nos, franzindo o sobrolho, ?isso não sei, é lá no país deles'. Hmmm. Ok, mas 40 euros por uma reserva sem fechar o lugar não faz sentido. O sueco bloqueia, empata tempo e, de repente, sem que nada o fizesse esperar, diz que tem de sair já na próxima estação mas que passa a indicação à colega para vir falar connosco. Sai em Malmo, a colega entra em Malmo e a única pergunta que nos faz é se entrámos em Malmo. Não, vimos de Copenhaga. Tudo certo, siga a viagem.

 

(*) "Qual a probabilidade de ...?" é a frase mote do tempo em que a Kim Basinger ainda fazia filmes. Este é em parceria com o Alec Baldwin e chama-se 'Esta loura mata-me' ou The Marrying Man no original.

 

(**) Dresden é uma cidade com uma história impressionante. Poucas cidades terão adoecido e sarado como esta.

 

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por sparks às 00:53

Quarta-feira, 21.08.13

A Europa vista daqui - look Jorge Jesus em Praga

Fazer um programa de férias à medida de dois adultos com as respectivas idiossincrasias e de três adolescentes com as respectivas manias (a mania do desporto, a mania da música, a mania dos carros e por aí fora) implica uma boa dose de conciliação, criatividade e muita paciência. Até aqui, os resultados têm sido bons e a chamada agenda-imprevisto tem nos brindado com alguns momentos impossíveis de planear e por isso mesmo preciosos.

Um deles aconteceu em Praga depois de uma discussão acesa (e cuja frequência tem sido assinalável) subjacente ao tema: 'a pé ou de transportes?'. Neste caso concreto, invocando o meu direito à 5ª emenda, não vou adiantar detalhes sobre quem defende o quê, ganhou a ala 'transportes' e acabámos no eléctrico 91 em direcção ao Castelo de Praga. Ou ao que julgávamos ser o Castelo de Praga. Na realidade, estávamos exactamente na direcção oposta à do castelo e ouvimos o sinete de fim de percurso num descampado em frente a uma espécie de recinto de feira deserto onde se anunciava um evento sob o signo do Tutankamon. 

A coisa começou mal desde o início. Ao almoço as coroas checas tinham sido gastas, sobravam apenas trocos e o dinheiro em euros que ia nos bolsos desde Portugal. Sem problema, pensámos sem verbalizar, já que em todo o lado - mesmo todo o lado - até então tinham aceite sem pestanejar coroas e euros, euros com troco em coroas, coroas com troco em euros, numa agilidade digna de registo.

Mas não no 91.

O 'pica' do 91 era um personagem do Tintin. Tintin e o Ceptro de Otokar. Não falava uma vírgula de inglês. A forma como nos olhava oscilava entre o intimidatório suave e o gentil anfitrião em excesso. Sem meio termo. Acabámos por fazer um acerto de contas estranho - ainda agora não percebo bem se perdemos dinheiro ou não - entre as 135 coroas checas e a moeda de 1 euro. Quando tudo parecia finalmente resolvido, o eléctrico pára no descampado e ele lá vai gesticulando a indicar que devemos sair. Sair? Aqui? Não tem reprodução o diálogo português-checo-sons vários que teve lugar até percebermos que ficaríamos ali 25 minutos até que o mesmo eléctrico regressasse para nos levar ao castelo.

Assim foi.

No ermo, descortinámos uma caixa multibanco ao lado da bilheteira do Tutankamon. Uma caixa onde não é possível levantar menos de 1000 coroas (parece um exagero mas são 40 euros). Tentamos trocar a nota única na bilheteira (a pensar nas pouquíssimas coroas necessárias para o bilhete de volta no eléctrico) e a empregada não fala nem inglês, nem sequer a tão útil língua primitiva do gesto. Aconselha-se com uma colega e ficamos com a impressão que acha que a nota é falsa. Atira-nos com umas sílabas que nos parecem incentivar a ir uns metros à frente e lá encontramos um bar-casino perdido no meio de nada. São quatro da tarde, a música toca alto e há slot machines num corredor apertado do bar. Não há clientes além de nós, bebemos Coca-Cola em garrafas antigas, Ice tea turvo e uma água tónica local. A senhora que nos atende é simpática e também não fala um pingo de inglês. Tem um marido a rondar, de cerveja na mão, mas sem qualquer préstimo que não esse.

Lá acabamos sentados em bancos de balcão corrido, bebidas à frente, nota de 1000 coroas trocada e Samantha Fox vinda dos anos 80 a trautear 'touch me, i want to feel your body'. Por breves momentos estivemos de facto no intervalo de um tempo que já acabou mas que ainda tem as suas memórias vivas em certos sítios, com certas pessoas e em certas circunstâncias. 

À saída ensaiamos um dekiuii e a dona do casino devolve-nos aquele sorriso de gratidão que em Portugal conhecemos bem, o mesmo que tantas vezes ainda fazemos quando um turista nos diz 'obrigado'. O eléctrico entretanto regressou e o 'pica' da Moldávia cumprimenta-nos como velhos conhecidos. Não cobra bilhete com aquele ar que também fazemos em Portugal quando não achamos admissível que um parente pague a bica no café lá do nosso bairro.

Resta dizer que esta outra Praga, a Praga anos 80, tem o seu expoente máximo nas músicas que se ouvem nos cafés, em alguns programas de televisão e na extraordinária multiplicação do look Jorge Jesus, desde o taxista da avenida central ao apresentador do Totoloto local.

Não somos assim tão diferentes, portugueses e checos, está visto. E sobre futebol, Jorge Jesus e afins, como será compreensível, não me apraz dizer mais nada.

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por sparks às 00:21

Domingo, 18.08.13

A Europa vista daqui - Destruímos isto juntos. Construímos isto juntos.

 

(escrito a 17 de agosto e publicado a 19 de agosto)

Chegámos ontem à República Checa, um dos quatro países que vamos visitar numa espécie de mini-interrail. Na preparação da viagem, percebemos que em três dos quatro países não usaríamos o euro como moeda oficial. Algo que na Europa não tenho memória há certamente mais de 10 anos, também porque os países que mais tenho visitado - à excepção da Grã-Bretanha - são indefectíveis da zona euro. E, como dizia um amigo, isto seria uma espécie de viagem não ao passado mas ao futuro da Europa, nesse tempo que alguns adivinham pós-euro. Chegámos ontem à República Checa onde se fala uma língua que não entendo e se paga cerveja a 30 coroas e senti-me completamente em casa. Na Europa. A Europa que hoje tanto discutimos está longe de ser um produto do euro ou sequer da uniformização linguística com o inglês que se fala no mundo inteiro. Não se trata de uma moeda nem de uma língua. A Europa que faz de nós europeus vive de locais que nos são familiares, de traços arquitectónicos que reconhecemos, de histórias da grande História que sabemos ser também nossas. Destruímos isto juntos. Construímos isto juntos. As tantas vezes que sobrevivermos à destruição-construção diz mais da nossa condição de europeus que todos os tratados que reis ou burocratas possam celebrar. Há uma condição europeia que nos faz ter orgulho da Praça de Cidade Velha em Praga ou da música que se ouve na em Klementin. A música, essa música que se ouve em toda a Praga, o jazz, o neo-punk-neo-metálico-neo-gótico, a performance moderna da Gay Prague ou o belíssimo recital de Bach, a música é Europa. Reconhecemo-nos uns aos outros, mesmo sem falarmos a mesma língua, ou transaccionarmos na mesma moeda. Reconhecemo-nos uns aos outros mesmo sendo espantosamente diferentes ou, por vezes, demasiadamente iguais.

À noite, já sem sentir os pés, procurámos sem êxito a Praça Venceslau, a da Revolução de Veludo, também a de Jan Palach. Uma praça que é tão nossa como o Largo do Carmo. A caminho do hotel, fazemos uma derradeira paragem em frente a um hotel que tem na montra a loba de Roma que amamenta os seus filhos, Rómulo e Remo. E lá fomos dormir sabendo que esta terra mágica, assustadora e ainda assim cheia de promessas é a nossa terra de passado e de futuro.

 

P.S. - Este post foi escrito na manhã de sábado, dia 17, mas devido a dificuldades com as comunicações não foi possível publicar de imediato. A Praça Venceslau foi uma das paragens obrigatórias em Praga e provavelmente um dos locais onde terá sido feita uma das fotos mais espantosas da viagem (pelo meu enteado, a quem terei de tratar por outra palavra já que esta é demasiado postiça quando se refere a alguém que faz genuinamente parte de nós e da nossa vida). Postiça é, ao invés, uma palavra que me ocorre para descrever o que senti hoje ao ver um dos palcos da Primavera de Praga e da Revolução de Veludo. Sim, o tempo passa. Sim, o mundo muda. Mas aquela não devia de ser apenas mais uma avenida europeia. E hoje foi apenas isso, mais uma avenida europeia. Sermos europeus (ou globais?) também é isto, mas, contrariamente ao que muitos defendem, é e tem sido a diferença que faz da Europa uma história única.

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por sparks às 10:36


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