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Os x e os actos e algumas coisas de cortar os pulsos
Photo: Maya Robinson and Photos by Getty Images /http://nymag.com/thecut
Nas últimas semanas de 2014 fui coleccionando uns quantos estudos e artigos sobre a idade.
Num desses artigos, The Power of 29: An Ode to Being Almost 30, a autora coloca-nos perante as angústias de ter 20 anos nos dias que correm. Ou talvez angústias de sempre, a julgar pela sábia observação da escritora Alice Munro, nos seus pródigos 83 anos, para quem a entrada nos 30 é 'aquela idade em que por vezes é difícil admitir que estamos a viver a nossa própria vida'. Continua a acontecer vida fora, diga-se de passagem.
Check. Ter 20 anos é difícil. (é escusado dizer que ser adolescente é ainda e sempre muito mais difícil)
Continuemos então.
A melhor idade são os 35. Diz um estudo da seguradora Aviva, aqui analisado pelo jornal Guardian.
Uma idade 'perfeita' sobretudo para o escalão etário seguinte (45-54), mais até que os próprios, e menos que o escalão dos vintes ou dos sessentas, respectivamente mais entusiasmados com a sua própria idade ou com os saudosos quarentas. Mas uma idade igualmente cheia de problemas e ansiedades, aliás segundo um estudo prévio (!), a idade do início da crise da meia idade.
Check. ter 30 anos é (também) difícil.
Dos 40 para a frente todos sabemos que é suposto ser difícil. Dizem-nos (ameaçam-nos) que sim desde que temos 20, ou menos. Aos 40 aparecem rugas a valer, as articulações articulam-se menos, as responsabilidades são maiores que nunca, os filhos crescem e dão-nos o tipo de preocupações que 10 anos antes, quando andávamos a preparar lancheiras e a garantir horários de dormir e sopa à refeição, achávamos absolutamente menores. Os pais ficam mais velhos, doenças injustas e acidentes imbecis acontecem (sim, acontecem antes também, mas de repente vemos um padrão em tudo). E é suposto continuar difícil vida fora, 50, 60, 70, talvez com a redenção da senilidade aos 80 ou 90.
Check. Ter 40, 50, 60, 70 anos é difícil.
Cheguei assim, há uns meses, a uma entrevista com a fabulosa Helen Mirren por ocasião do anúncio do seu nome (e rosto) como cabeça de cartaz das campanhas da L'Oréal. Felizmente Mirren não faz parte do grupo do 'vamos-lá-dizer-o-que-toda-a-gente-está-à-espera'. E toda a gente está à espera que se queixe da discriminação das mulheres, nomeadamente no mundo carnal do cinema e do espectáculo. Toda a gente está espera que diga que envelhecer é uma merda e que para as mulheres é pior do que para os homens. O que, não deixando de ser verdade, está longe de ser toda a verdade. E é por isso que há esperança quando ouvimos Mirren, nos seus 69 anos, dizer que os 20 foram óptimos, os 30 espectaculares, os 40 fabulosos, os 50 extraordinários, os 60 fantásticos e que espera que os 70 não sejam nada menos que isso.
Ou reflectir sobre as reflexões que faz na sua autobiografia sobre os fabulosos 20 anos: “It seems to me that the years between eighteen and twenty-eight are the hardest, psychologically. It’s then you realize this is make or break, you no longer have the excuse of youth, and it is time to become an adult — but you are not ready”.
E depois temos Annie Lennox, a poderosa Annie Lennox. Que fez 60 anos há uma semana, no dia de Natal.
"There's this youth culture that is really, really powerful and really, really strong, but what it does is it really discards people once they reach a certain age. I actually think that people are so powerful and interesting - women, especially - when they reach my age. We've got so much to say, but popular culture is so reductive that we just talk about whether we've got wrinkles, or whether we've put on weight or lost weight, or whether we've changed our hair style. I just find that so shallow".
Claro que Nora Ephron tem o seu ponto no ensaio I Feel Bad About My Neck: And Other Thoughts on Being a Woman.
Claro que quando vemos 40 anos de tempo a passar nos impressionamos.
Mas que enorme desperdício passarmos grande parte desse tempo a temer o tempo que passa.
Como diz João Miguel Tavares, 'cada cabelo branco grita "eu vivi" do alto das nossas cabeças'. Não é conversa fiada - é mesmo um apelo incondicional a que não desperdiçamos o nosso tempo a lamentar o outro tempo que passou.
Há uns anos, há já bastantes anos, quando entrevistei o Engº Belmiro de Azevedo pela primeira vez, resolvi, na frescura dos meus 20 e poucos anos, arriscar uma pergunta sobre a importância da idade. Deu-me uma resposta que ainda hoje repito em vários momentos: 'Sabe uma coisa, minha senhora? A idade é a coisa mais democrática do mundo. Passa igual por todos".
E ainda bem que assim é.
Aproveitem as vossas idades e tenham um Feliz 2015!
Ontem fui ao cinema.
"About time", em português "Dar tempo ao tempo", foi o filme escolhido.
Um filme que sai da mesma cabeça e do mesmo coração de quem filmou e escreveu Love Actually e que escreveu Four Weddings and a Funeral. Assim para ir directo à prateleira dos que são filmes de sempre para mim.
É um filme de uma sinceridade tão bonita que desafia qualquer cínico a soçobrar. É um filme sobre o que fazemos com as nossas vidas. É um filme sobre o que não fazemos com as nossas vidas.
Se pudessemos viajar no tempo, dentro da nossa própria história, não na grande História do mundo, o que mudaríamos? O que faríamos diferente? Que gaffes evitaríamos e que abraços não deixaríamos por dar? Não é lamechas. É inteligente, burguês, divertido. E é sincero, absolutamente verdadeiro, sem qualquer efeito especial que não as nossas emoções, no nosso próprio carrossel. O que não dissemos aos nossos pais, o que não queremos deixar de dizer aos nossos filhos, todas as vezes que dissemos 'amo-te' à pessoa que escolhemos e que nos escolheu. Lembra um outro filme, The Groundhog Day, com Bill Murray, mas é menos sarcástico e mais puro. E está muito, muito bem filmado, daquela forma que o cinema deve ser, quando um filme nos transporta durante 1 ou 2 horas para outro epicentro que não é o nosso, fazendo-nos acreditar que é o nosso.
Mais do que mudar o rumo dos acontecimentos, Richard Curtis, argumentista e realizador, diz-nos que viajar no tempo seria especialmente útil para apreciarmos cada dia, nem que para isso fosse preciso viver duas vezes cada dia - uma na pressa, com ansiedade, sem tempo para sentir, e outra, vivendo efectivamente os dias. Os bons, os maus, os assim-assim, sabendo que são únicos, irrepetíveis e que por alguma razão vamos um dia ter saudades de um desses momentos banais que deixámos passar sem dar atenção.
As nossas vidas são extraordinárias e banais e o grande segredo de tudo isto é não perder o espanto, a atenção ao pormenor e a doçura de todas as coisas que nos fazem falta sem nós sabermos disso.
P.S. - Só uma pequena nota. Este não é um filme de desafio intelectual nem de prémio em festival de cinema. Mas, o cinema pode ser muitas coisas e uma dessas coisas é de certeza provocar-nos com algumas banalidades (e coisas extraordinárias) que, em regra, estamos demasiado apressados para reparar.
Ou como diz o Daily Telegraph: It’s great to be challenged and needled and stung by cinema, but watching a film needn’t always be a battle; Time is on your side.
No fim de semana passado, a crónica do Padre José Tolentino Mendonça no Expresso era, mais uma vez, straight to the heart. Não o leio todas as semanas, mas sempre que leio, as palavras que escreve ficam-me na memória. Uma outra crónica, também deste ano, intitulada 'O sal da vida' vive na minha mesa da cozinha desde há seis meses. Só porque de vez em quando preciso de voltar àquele texto e àquelas palavras. Tem um aspecto - como podem constatar na foto junto - 'usado'. Já lá passaram alguns pequenos-almoços, já vários amigos pegaram desinteressadamente na revista e acabaram a ler a crónica até ao fim, já teve cestos da roupa em cima, travessas de comida, compras ao sábado. Mas foi e vai ficando. Nesta crónica, José Tolentino Mendonça fala de Françoise Héritier, uma antropóloga com 80 anos, convidada para 'a cadeira que Lévi-Strauss deixou vaga no Colégio de França'. E a partir daqui conta-se a história de um bilhete postal enviado por um amigo à antropóloga onde é usada a expressão 'roubei esta semana para umas breves férias'. Héritier escreve então uma carta, sem destinatário, sobre o nosso uso do tempo, sobre a voracidade dos nossos dias.
"A verdade é que privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia, o que é, se não isso?"
No sábado passado, José Tolentino Mendonça escreveu sobre o perdão. desculpem, escreveu com uma generosidade comovente sobre o perdão. Não sei se existia uma mensagem também subliminar ao outro perdão, o dos abutres, vulgo o da dívida, talvez sim. Gosto de pensar que sim. Mas, na realidade, o que li foi sobre o perdão entre todos nós, na nossa vida diária, o perdão como uma forma de progresso, de novo dia. O que li era para todos nós, o que li era para mim num ano em que, em vários momentos, naquele optimismo com a espécie humana que me tem acompanhado, fui obrigada a conviver com o lado negro da força, a natureza humana no seu estado de mesquinhez e obscurantismo.
E estão ali as palavras escritas. "Todos precisamos de perdão. O perdão instala um corte positivo, interrompe a baba inútil de tristeza, esta maceração que nos faz infelizes e nos leva a esmagar os outros de infelicidade".
E é tão isto. Lembrei-me que há uns anos, por uma razão que na distância do tempo me parece tão absolutamente inútil, tive uma zanga com uma das pessoas que me é mais querida. Durou meses. Um dia conversámos e essa pessoa perguntava-se se já me tinha esquecido da razão que nos levara a zangar. Eu, feliz com o reencontro, disse-lhe que não me tinha esquecido mas que tinha decidido não me lembrar. E que bela decisão essa foi.
"Tão facilmente ficamos atolados em becos cegos, em círculos sem saída, reféns de uma amargura que cada vez mais vai sendo mais pesada e contamina inexoravelmente a vida. O ato de perdão é uma declaração unilateral de esperança. O perdão não é um acordo. (...) Perdoar é crer na possibilidade de transformação, a começar pela minha." Ou seja, não conseguindo dizer melhor do que quem escreveu, o perdão é um acto de liberdade, talvez da liberdade mais libertadora, passe o pleonasmo, a que nos faz seguir em frente.
José Tolentino Mendonça acrescenta ainda um pormenor, que tantas vezes é tudo menos pormenor: "muitas vezes aproveitamos a dor para nos instalarmos nela. Preferimos a esgravatar na ferida, a comer diariamente o pão velho da própria maldade em vez de termos sede de beleza, desejo de outra coisa. (...)
Ora, para perdoar é preciso ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há. O perdão começa por ser uma luzinha. E é bom insistir e esperar. O sol não brota de repente."
Ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há é provavelmente a melhor declaração de vida que li nos últimos tempos. E é tão estranhamente verossímil esta descrição. Pensem lá, nos vossos trabalhos, nas vossas famílias, quantas pessoas encontram presas ao que correu mal, com um prazer tortuoso no que correu mal e em prolongar a vida do que correu mal, mesmo quando já não corre assim tão mal.
Precisamos de interromper esses ciclos. De perdoar. De perdoar-nos também. Para seguir em frente.
E volto ao texto sobre o sal da vida:
"Há uma leveza, uma graça singular no puro e simples facto de existir, para lá de todos os compromissos profissionais, dos sentimentos intensos, das lutas políticas e humanas: é disto e de nada mais que vou agora procurar falar. Desse minúsculo não sei o quê a que chamarei o sal da vida".
Há uma lista abolutamente extraordinária que se segue de actos de 'puro acto de existir'.
- 'Recordar-se sem vergonha das imbecilidades que fizemos lá atrás'
- 'dançar maravilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock'n roll'
- 'passar uma noite em branco para ler até ao fim um romance'
- 'improvisar durante a semana um jantar de amigos'
- 'não conseguir recordar-se da sequência de uma anedota apesar de todos os esforços'
- 'preparar uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga) herdada da avó,
- 'respirar devagar e de olhos fechados num prado'
- 'reencontrar no armário o calçado de verão quando ainda é inverno'
- 'pensar com prazer nos encontros que nos mudaram a vida'.
Termina com 'ser feliz quando os outros são'.
Para a minha amiga Catarina, que fez anos esta semana e que me/nos lembra sempre que pode que o tempo é para ser vivido, e para a minha amiga Helena, a minha antropóloga de serviço, com quem partilho há uma vida a liberdade de errar e de perdoar (à vez).
Além de todos vocês, claro.
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